Médico paraibano lidera pesquisa com pele de tilápia no tratamento de queimados

Uma pesquisa pioneira no mundo está sendo desenvolvida pelo paraibano Marcelo Borges em queimaduras. Ele utiliza a pele da tilápia para isolar a ferida do meio externo, o que diminui o tempo de duração do tratamento em até quatro dias, além de dar conforto ao paciente pela quase total inexistência de dor. Nessa entrevista ao Correio, Marcelo Borges contou como teve a ideia de desenvolver o trabalho e revelou que ela já foi publicada em mídias de 25 países e traduzida em sete idiomas, além de ter os vídeos nas redes sociais visualizados por mais de 130 milhões de pessoas. A pesquisa que é totalmente desenvolvida no Brasil entra agora na terceira fase com mais 130 pacientes sendo tratados.

-O que faz a pele da tilápia ser importante no tratamento de queimaduras?

– Em nossos estudos laboratoriais ficou comprovado que a pele da tilápia tem duas vezes mais a quantidade de colágeno tipo I que a pele humana. Esse colágeno (tipo I) exerce papel importantíssimo no processo de cicatrização das feridas. Essa quantidade em dobro justifica o fato de que com o uso das peles da tilápia na pesquisa, as queimaduras têm cicatrizado mais rapidamente (de 2 a 4 dias a menos quando comparadas com o grupo controle que utiliza pomada à base de prata).

– O tratamento será oferecido ao SUS (Sistema Único de Saúde)?

– Ao final da pesquisa, comprovada a eficácia do tratamento que até agora estamos observando, iremos dar entrada no pedido de registro do produto junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Uma vez autorizado, o curativo com a pele da tilápia será oferecido ao Ministério da Saúde, com a proposta para ser padronizado no Sistema Único de Saúde (SUS).

– A que processo a pele de tilápia é submetido para estar em condições de ser aplicada ao tratamento?

– Para a pele ser considerada esterilizada, idealizamos combinar : Clorexidina que é um antisséptico + Glicerol (que é um álcool) em altas concentrações, que funciona como um agente descontaminante + Radiação ionizante (Gamma Cobalto 60) na dosagem de 30 KGy, que inativa a ação dos vírus. Como resultado final obtivemos uma pele esterilizada e segura para uso em humanos, comprovada através de vários testes laboratoriais. A pele fica descontaminada em relação a bactérias, fungos e vírus.

-Todo o processo é feito no Brasil?

– Isso tudo é feito no Brasil, entre o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento em Medicamentos, vinculado a Universidade Federal do Ceará, sob a coordenação do professor Odorico Moraes – essa etapa em Fortaleza e no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares da USP aos cuidados da doutora Mônica Mathor. É em São Paulo  que a pele recebe a radiação, onde ela é  considerada completamente esterilizada e segura para aplicação em humanos  no tratamento das queimaduras.

– O tratamento é exclusivo para os casos de queimaduras ou pode ser aplicado em qualquer grande lesão?

– Também, embora – como nós estamos concluindo a pesquisa científica – ela está direcionada para queimaduras. Mas nós daqui a alguns meses vamos começar estudos em outras feridas, sobretudo as feridas crônicas, como aquelas clássicas conhecidas como feridas do pé do diabético.

– O que levou o senhor a escolher a pele da tilápia para a pesquisa?

– Em novembro de 2011, quando li num jornal local, no Recife uma matéria cujo título era: “Couro da tilápia vira artesanato”. A matéria comentava que o couro da tilápia estava sendo utilizado para confecção de peças íntimas femininas, como bolsas, sapatos e cintos. Daí me veio o primeiro questionamento: se a pele da tilápia tem resistência e delicadeza ao mesmo tempo, para ser utilizada na confecção de acessórios femininos delicados, por que não teria a mesma resistência e delicadeza para substituir a pela humana temporariamente no tratamento das queimaduras? Além desse fato teve a coincidência de um mês depois eu estar inaugurando o Banco de Pele aqui do Instituto Materno-Infantil de Pernambuco – Imipe – e no Banco de Pele aprendi a esterilizar a pele humana com segurança. E a partir desse conhecimento comecei a idealizar como fazer as adaptações necessárias desse processo de esterilização da pele humana para transferi-las para o processo de esterilização da pele da tilápia.

– Nenhum componente, digamos histórico?

– Um outro fator que me levou a pensar na pele da tilápia, foi que, pela primeira vez, no mundo, alguém estaria pensando num animal de ambiente aquático para produzir um curativo biológico de origem animal.

– Como era antes?

– Até então, a Ciência havia pesquisado alternativas em animais do ambiente terrestre como cão, gato, rato, galinha e porco. O porco, diga-se de passagem, resiste até os dias de hoje e é comercializado – a pele industrializada em países do primeiro mundo, sobretudo nos Estados Unidos.

– E no Brasil?

– No Brasil, nunca houve condição para utilização da pele do porco, em função dos seus altos custos de comercialização. Um terceiro fator foi o desejo de experimentar uma alternativa de curativo biológico de animal de outro ambiente, que não fosse o terrestre, como pesquisado por décadas e décadas.

– Então há um pioneirismo na pesquisa?

– Pioneira no mundo.

– Que resultados lhe animam a continuar a pesquisa e tentar patentear o produto?

– Vamos tentar patentear e registrar junto a Anvisa. Já temos catalogado tratamento com 70 pacientes com queimadura de segundo grau, tanto segundo grau superficial como segundo grau profundo, em áreas do corpo acometendo até 20% de superfície queimada. Nesse primeiro grupo, obtivemos os seguintes resultados: redução do tempo de tratamento de dois a quatro dias, quando comparado ao grupo controle – grupo de pacientes que fazemos estudos comparativos, utilizando um creme tradicional à base da prata.

– Esse é o tratamento padrão?

– É o convencional. Tratamento standard preconizado pelo Sistema Único de Saúde. Além disso, tivemos uma redução no número de troca de curativos e também a dispensa, quase total, de analgésicos ou anestésicos durante os procedimentos para troca de curativos.

– Quais os resultados da recuperação dos pacientes?

– Eles têm tido uma boa recuperação. A cicatriz tem sido sempre de boa qualidade e eles inferem um alívio muito grande em função da inexistência de dor ao longo do tratamento, dor essa muito frequente quando se compara com o tratamento hoje padronizado à base de pomadas com a prata.

– O que possibilita esse conforto do paciente sentir menos dor?

– O glicerol que faz parte do protocolo de esterilização da pele, é um álcool utilizado em altas concentrações – 85% – no processo. Além de descontaminar a pele o glicerol tem a chamada ação higroscópica, que faz com que haja uma desidratação da pele, sobretudo da camada mais profunda da pele, chamada de derme.

– O que ocorre no tratamento com a pele da tilápia?

– Nós aplicamos a pele da tilápia desidratada sobre a ferida da queimadura, que é úmida, molhada, tem muita água, muitos sais minerais e complexos protéicos. Em função dessa desidratação e da superfície da ferida ser molhada, por um fenômeno chamado de capitalização, esses fluídos oriundos da ferida queimada penetram na intimidade dessa derme que foi desidratada, portanto, funcionando como uma esponja, fazendo a sucção desses fluídos, mantendo a ferida limpa e, mais do que isso, mantendo o íntimo contato dessa ferida com o colágeno que existe em grande quantidade na pele da tilápia.

– Qual o papel do colágeno?

– É a grande ponte que faz com que os elementos envolvidos na cicatrização de qualquer ferida passem através dele com o objetivo de reparar os tecidos, só que na tilápia, os nossos estudos em laboratório mostraram que a quantidade de colágeno tipo 1 – que é o colágeno maduro, ideal para a cicatrização de feridas – existe na tilápia em quantidade duas vezes maior do que na pele humana. Isso justifica e explica a aceleração no processo de cicatrização dessas feridas.

– Mecanicamente o que ocorre no contato da pele de tilápia com a humana?

– Esse aspecto de capilaridade e o efeito esponja fazem com que a pele da tilápia fique absolutamente grudada, colada, aderida ao leito da ferida protegendo essa ferida, por completo, eliminando o risco de contaminação e isolando do meio externo o que explica a ausência da dor no transcorrer de todo o tratamento, incluindo os momentos de torças de curativos.

– Essa troca de curativos ocorre de quantos em quantos dias?

– Entre duas a três vezes por semana. A ferida fica tampada, lacrada, vedada, isolada do meio externo, portanto, temporariamente, ela funciona como a pele normal do indivíduo.

-Quanto tempo dura o tratamento?

– Vai depender da lesão, mas em média entre 9 e 12 dias, enquanto que no tradicional a duração vai entre 12 e 16 dias.

– Na relação com os custos o tratamento também é um sucesso?

– Também, até porque, a aderência, a adesividade dessa pela ao leito da ferida é tão densa, que nós utilizamos a mesma pele em 80% das peles utilizadas, ou seja, a cada dez peles que eu utilizar no primeiro curativo, ao longo do tratamento, oito delas serão mantidas desde o início até o fim. Trocamos em média duas, a cada dez lâminas que são aplicadas sobre as feridas.

– Numa iniciativa dessa importância, o senhor recebeu muita ajuda?

– Eu gostaria de registrar alguns agradecimentos, porque fazer pesquisa no Brasil é muito difícil. Sem o apoio que recebi talvez eu não conseguisse ter viabilizado essa pesquisa. A Enel – Companhia Energética do Ceará -, que financiou o projeto através de uma ONG, que é o Instituto de Apoio ao Queimado, cujo presidente é o doutro Edmar Maciel, que coordena essa pesquisa e inclusive acompanha os pacientes em tratamento em Fortaleza. Preciso também agradecer a diretoria do Instituto José Frota, que é o grande hospital de emergência em Fortaleza, que disponibilizou sua unidade de queimaduras para fazer parte da pesquisa. Também devo destacar o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos, vinculado à Universidade Federal do Ceará, coordenador pelo professor Odorico Moraes. E TAM bem ao Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares da USP sob o comando da doutora Mônica Mathor.

– Essa pesquisa colocará o Brasil numa espécie de vanguarda científica?

– Ela pretende quitar uma dívida tecnológica que existe em nosso País em relação ao tratamento de queimaduras. Enquanto o primeiro mundo utiliza a pele de porco como curativo biológico de origem animal para o tratamento de queimaduras, no nosso País, simplesmente, há 50 anos, não temos nenhuma alternativa. A pele de porco tem sido utilizada no primeiro mundo desde os idos de 1965. Não temos nada semelhante.

– Os resultados já estão sendo divididos com cientistas de outros países?

– Recentemente – em fevereiro passado – apresentamos no Havaí durante o 39º John Boswick Symposium, o maior evento científico de queimaduras e feridas do mundo. Os adjetivos dos moderadores foram fantástico e maravilhoso.

– Qual o próximo passo da pesquisa?

– Estamos começando em Fortaleza a fase 3 da pesquisa em humanos. Isso significa dizer que estamos começando a tratar mais 120 novos pacientes, que serão somados aos 70 que já foram tratados. Teremos apresentação no dia primeiro de junho na Jornada Brasileira de Queimaduras em São Paulo e em outubro no Congresso Brasileiro da Sociedade Brasileira de Tratamento Avançado de Feridas.

– O senhor espera concluir a pesquisa em quanto tempo?

– Algo em torno de mais doze meses. Já estamos com dois anos de meio de trabalho e com mais um ano espero concluir. A ideia teve seus primórdios em 2011, mas só consegui viabilizar, na prática, no final de 2015.

– É feita exclusivamente no Brasil ou tem colaboração internacional?

– É 100% verde-amarela. Mas está tendo repercussão internacional. Já foi publicada em mídias das mais diversas em 25 países, traduzida para sete idiomas e vários vídeos já totalizam mais de 130 milhões de visualizações.

– Algum País já tentou transferir a tecnologia?

– Sim. Já temos contatos com a Arábia Saudita, o Egito e nos Estados Unidos no serviço do San Antonio Military Medical Center, no Texas. No entanto, são negociações e contatos classificados como preliminares.

CARIRI EM AÇÃO

Correio da Paraíba/ Foto: Luiz Carlos Sousa-Arquivo pessoa

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