Febre amarela: os enigmas que a ciência ainda não consegue explicar

A até agora inexplicável explosão de casos de febre amarela em regiões onde o vírus era pouco atuante há décadas trouxe um desafio para saúde pública brasileira. Até o momento, não se sabe quais os fatores que influenciaram esta dispersão do vírus. Nem por qual motivo os mosquitos da zona urbana, como o Aedes aegypti, ainda não o transmitem, mesmo tendo a capacidade para isso.

“Não é a primeira vez que a febre amarela se desloca. De tempos em tempos, há surtos fora da área amazônica. Mas o que vemos é que ao longo dos últimos 20 anos ela vem descendo. Neste ano, o surto de 2018 é continuidade daquele que teve início em 2016 em Minas Gerais, com um impacto muito grande em 2017”, explica Rivaldo Venâncio, coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “O vírus não desce sozinho. Ou ele desce por meio do deslocamento dos primatas ou por meio de pessoas que moram nas florestas e descem para o Sudeste. Muitas vezes, elas estão com uma infecção sem sintomas ou com manifestações clínicas sutis e não sabem que estão doentes”, continua Venâncio.

A febre amarela é uma doença endêmica da região amazônica (ou seja, que circula naturalmente nesta região). Por isso, ela já faz parte da rotina de vacinação. Com a ampla cobertura vacinal, a população do Norte está quase toda protegida e são poucos os casos da doença que atualmente acontecem por ali. Por isso,os 353 casos confirmados no país no ultimo ano até a última quarta-feira, aconteceram no Sudeste (com exceção de um ocorrido no Distrito Federal). O padrão é semelhante ao do ano anterior, quando 777 casos da doença foram confirmados, 764 no Sudeste.

No Sudeste e no litoral do país, como a doença não é endêmica, a população estava pouco vacinada. Por isso, houve uma explosão de casos e a desesperada corrida a postos de saúde em busca da vacina. Em 2016, o ressurgimento do vírus nesta parte do Brasil causou o maior surto da doença das últimas décadas.

Pesquisadores procuram entender o que poderia ter mudado este padrão de infestação e porque ele ganhou esta velocidade nos últimos dois anos. “Há pesquisas que estudam se o aquecimento global estaria mexendo com o habitat dos primatas. Outras falam sobre a ampliação da fronteira agrícola do país para áreas do Norte e Centro-oeste não cultivadas antes ou onde a criação de gado foi substituída pelo plantio de soja e milho, que usam agrotóxico. Isso causa uma movimentação gigantesca de um ecossistema que estava quieto por muitos anos e a natureza dá a resposta”, destaca o coordenador de vigilância da Fiocruz.

O Centro de Informação em Saúde Silvestre da fundação busca descobrir desde o ano passado quais alterações ambientais podem ter provocado a dispersão atual da doença. São analisados 7.200 parâmetros para isso. A bióloga Marcia Chame, coordenadora do programa, afirma que os surtos fora da Amazônia estão relacionados com fragmentos de matas muito pequenos, reforçando o argumento da correlação do aumento da doença com a degradação ambiental.

Outros cientistas também analisam como o surgimento de uma linhagem moderna do vírus pode ter ajudado neste novo padrão de dispersão da doença. Esta nova linhagem surgiu no final da década de 1970, provavelmente em Trinidad e Tobago, afirma uma pesquisa conjunta dos Laboratórios de Aids e Imunologia Molecular, de Biologia Molecular de Flavivírus, de Mosquitos Transmissores de Hematozoários e de Genética Molecular de Microrganismos da Fiocruz. Segundo os pesquisadores, ela foi a responsável pelo recente surto, que começou em 2016 em Minas Gerais.

Mosquitos

Todos os casos ocorridos no país são do tipo silvestre da doença, transmitido dentro de área de mata nativa pelos mosquitos Haemagogus e Sabethes. Este tipo de inseto prefere as copas das árvores para a reprodução e, por isso, pica preferencialmente macacos, se alimentando de seu sangue. O homem, quando se infecta, é por acidente, porque entrou na área de mata e o mosquito desceu para se alimentar por não ter alimento na parte de cima da árvore. O ciclo urbano da doença é transmitido por outros mosquitos. O principal deles é o Aedes aegypti, que também espalha dengue, chikungunya e zika. O ciclo urbano, apesar da forte presença deste mosquito na cidade, não acontece desde 1942 no país.

Isso também se transformou em um outro enigma para os cientistas. Por que até agora, mesmo com tantos casos de febre amarela silvestre em áreas próximas a grandes metrópoles, ainda não surgiram casos do tipo urbano da doença? O Aedes teria perdido a competência para transmitir a doença? Estaria com a capacidade esgotada por conta de tantos outros vírus competindo por um único hospedeiro? Outra pesquisa da Fiocruz comprovou que quatro espécies de mosquito, dois deles urbanos, sendo um o Aedes, podem, sim, transmitir a doença. Eles foram infectados em laboratório com sangue com vírus e os cientistas puderam comprovar que o vírus chegava à saliva de boa parte dos mosquitos. Quando o mosquito pica, ele cospe em sua vítima saliva, que possui  substâncias analgésicas e anticoagulantes que o ajudam a não ser notado. É neste momento que partículas do vírus são injetadas na corrente sanguínea.

“O mosquito tem competência para transmitir o vírus. Mas o ciclo urbano não está ocorrendo. Por que? Isso é o que todo mundo está se perguntando”, afirma a entomologista Dinair Couto Lima, pesquisadora do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários da Fiocruz e uma das autoras da pesquisa. Segundo ela, uma das hipóteses para que a transmissão urbana ainda não tenha acontecido é que o controle do Aedes nas cidades, apesar de problemático, está mais controlado. Com uma população de mosquitos menor, a transmissão pode estar controlada. “As pessoas se vacinando também criam uma barreira muito importante”, destaca ela.

Rivaldo Venâncio também destaca que o período de viremia (quando o vírus está no sangue do homem e pode transmiti-lo para um mosquito não infectado, continuando a cadeia de transmissão) é muito pequeno no caso da febre amarela. “O vírus fica entre um e dois dias na corrente sanguínea. O da chikungunya, por exemplo, fica entre sete e oito dias”, destaca ele. “A febre amarela silvestre não deixará de existir, pois não tem como acabar com o ciclo entre o macaco e mosquito. Por isso é importante vacinar a população urbana, para que ela seja mantida em um nível sustentado entre os humanos. A tendência é que a médio prazo, entre quatro a cinco anos, todo o Brasil seja área de vacinação, inclusive nestas áreas onde hoje a vacina não é aplicada na rotina. Esporadicamente vai haver alguém que não se vacinou e corre o risco”, conclui ele.