Sabemos que a corrida eleitoral vai ser acirrada. Não tanto pelos candidatos fortes que temos, mas muito mais pelas disputas narrativas empreendidas por seus eleitores e os inúmeros veículos de comunicação. A arena certamente será o WhatsApp, que vem se tornando também importante substituto de veículos tradicionais de comunicação
Seria possível definir os rumos de um país apenas com um app? Influenciar resultados eleitorais, difamar políticos, recriar a realidade difundindo notícias, “falsas” ou “verdadeiras”, ao atingir grupos específicos e peças-chave em estratégias de (des)informação? Quando quase 80% dos brasileiros usam o WhatsApp, não é surpresa a importância e o poder político da ferramenta no país.
Os primeiros indícios do poder do WhatsApp na proliferação de notícias em escala nacional começaram ainda em 2015, quando do surto de zika vírus e sua relação com a epidemia de microcefalia no país. Em um ano foram registrados quase 2 mil casos em catorze estados, o que gerou alarme na população e uma onda de notícias que chegavam aos grupos de chat com os já clássicos dizeres “fonte segura” de autores que não poderiam ser revelados. Ministério da Saúde, Fiocruz e redes de médicos e jornalistas começaram a se mobilizar para acalmar a população e frear o movimento de desinformação.
Nos dois anos seguintes, o mundo conheceu as fake news – uma espécie de onda que vem transformando nossa ideia de internet e elevando a altíssimas potências o valor da credibilidade das informações que lemos e repassamos (ler mais na pág. 8). Diversos atores estão envolvidos nesse drama, como é comum nos acontecimentos históricos. Para mim, interessa aqui saber como o WhatsApp tem se tornado a ferramenta central de proliferação de notícias e, paralelamente, de formação de novas configurações coletivas.
Alberto Melucci foi um sociólogo italiano que nos anos 1980 questionou a forma como os movimentos sociais eram entendidos, quase sempre de forma homogênea, com objetivos claros e estruturas organizadas. Ele sugeriu então a formação de uma “rede de movimentos”: uma tessitura de grupos que partilham uma cultura ou uma identidade coletiva. Era como se os movimentos sociais estivessem mudando suas formas organizacionais e adquirindo autonomia em relação aos sistemas políticos, criando subsistemas específicos que se tornavam pontos de convergência de diferentes formas de comportamento. Possivelmente a missão dessa rede de movimentos era fazer a sociedade ouvir suas mensagens, apresentar suas reivindicações sem institucionalizar-se, ocupando um espaço até então inexistente entre a sociedade civil e o Estado.
Se dermos um salto histórico, a greve de maio organizada pelos caminhoneiros brasileiros no WhatsApp pode fazer parte dessa rede de movimentos elaborada por Melucci trinta anos atrás. A comunicação desta vez é mais difusa. No caso da greve, não era possível saber a fonte exata das mensagens, que podiam ser em texto, áudio, vídeo ou foto. Os líderes eram muitos e isso dificultou as negociações com um governo acostumado a trocar com sindicatos e lideranças personificadas. O movimento ainda foi protagonizado pela geração pré-digital, o que complexifica as análises centradas na juventude conectada. Chamaram “a revolta do pavê”. Reportagem da BBC Brasil traz detalhes importantes sobre como a ferramenta foi utilizada na articulação da greve.1
Se por um lado acompanhamos o surgimento de novos modelos de ação coletiva nos grupos de WhatsApp, por outro esse é o novo espaço para a proliferação incontrolável de notícias falsas, como vimos. Esse contraponto pode ser fundamental para entender como viemos construindo nossas referências políticas enquanto sociedade. O caso emblemático das tentativas de difamação, via WhatsApp, da vereadora Marielle Franco depois de seu brutal assassinato é uma imagem nítida desse paradoxo. As notícias difundidas nos grupos de zap apontavam para julgamentos morais, políticos, estéticos. A disputa ideológica em que se colocaram personagens “pró” e “contra” os movimentos de direitos humanos é uma das ameaças que o uso da ferramenta ainda pode trazer para comunidades afetadas pelo ódio e pela intolerância.
Já sabemos que a corrida eleitoral vai ser acirrada. Não tanto pelos candidatos fortes que temos, mas muito mais pelas disputas narrativas empreendidas por seus eleitores e os inúmeros veículos de comunicação. A arena certamente será o WhatsApp, que vem se tornando também importante substituto de veículos tradicionais de comunicação.
Em julho de 2016, o estudo The WhatsApp Nation (“A nação WhatsApp”), realizado pelo Mobile Ecosystem Forum (MEF), divulgou que o Brasil é o segundo país que mais usa a rede, ficando atrás apenas da África do Sul. A pesquisa foi feita em nove grandes mercados e destacou que 76% dos usuários mobile utilizam regularmente o app de comunicação. Segundo o Digital News Report de 2017, um estudo sobre o consumo de notícias produzido em conjunto pelo Reuters Institute e pela Universidade de Oxford em 36 países, 46% dos brasileiros usam WhatsApp para encontrar notícias.
O WhatsApp como fonte de notícia faz parte do diagnóstico da crise de confiança que atinge o jornalismo e suas causas – a fragmentação noticiosa, o viés de confirmação, a polarização política e deficiências no fazer jornalístico. No final de 2017, a britânica Claire Wardle, diretora do First Draft News, em parceria com o jornalista iraniano-canadense Hossein Derakshan, publicou o relatório Information Disorder – Toward an Interdisciplinary Framework for Research and Policy Making (“Desordem da informação – Rumo a um quadro interdisciplinar de pesquisa e formulação de políticas”), encomendado pelo Conselho da Europa e que diagnosticou e apresentou algumas causas para o fenômeno da produção e disseminação de conteúdo digital enganador e fraudulento. O relatório traz 34 recomendações direcionadas a empresas de tecnologia, governos, veículos de imprensa, sociedade civil e fontes de financiamento. Os conselhos que mais chamam atenção recomendam transparência algorítmica, trabalho colaborativo entre sociedade civil, empresas e governo e fim dos incentivos financeiros para produtores de desinformação.
Hoje estou coordenador do data_labe, um laboratório formado por jovens oriundos de periferias que acreditam em novas narrativas produzidas por meio de dados. A sede da organização fica no Complexo de Favelas da Maré, que passa por intensa intervenção violenta do Estado, assim como vive constante conflito entre grupos civis armados. Presenciamos todos os dias violações de direitos básicos como moradia, saúde, saneamento, segurança e a vida. No centro dos debates e projetos do data_labe está a questão do imaginário construído sobre as cidades, seus centros, periferias e as pessoas que vivem nelas. Aos poucos vamos entendendo que contar histórias e disputar o acesso e a produção dos dados no Brasil é uma missão política, estética e cidadã.
Acredito que o data_labe seja um exemplo desses novos movimentos sociais, organizados pela juventude com base em suas referências conceituais e estéticas, que aproximam tecnologia e consciência de classe; empoderamento racial e política partidária; direitos humanos e empreendedorismo, horizontalidade e modelo de negócios. Só para constar, o WhatsApp é uma das ferramentas que mais utilizamos.
Um dos projetos que vêm tomando nossa atenção é o rastreamento de cem grupos de WhatsApp a fim de detectar desinformação durante a campanha eleitoral. Em parceria com a Escola de Jornalismo da Énois, para jovens de periferias de São Paulo, nós montamos um time de quinze jovens que participam de grupos de zap diversos. Durante o primeiro mês de projeto passamos por um processo formativo intenso, que começou com o autorreconhecimento político: por que eu penso como penso e ajo como ajo? Quais referências políticas me constituíram? Então, o que é verdade? Faz sentido discutir pós-verdades quando o jornalismo forjou desde os primórdios a ideia de detentor absoluto dos fatos? O que é checagem de informação? A partir daí vamos olhar para as falácias, as mentiras, os falsos silogismos, as metonímias, as malandragens retóricas. E, por fim, produzir conteúdos que relativizem as artimanhas hegemônicas dos políticos tradicionais. Acreditamos atingir um espectro mais amplo de eleitores e propagadores de desinformação. Eles são nossos pais, tias e primos, espalhados pelos grupos de zap nas periferias dessas duas metrópoles que seguem tomando como referência os veículos dominantes de comunicação.
Em outra ponta do espectro do uso do aplicativo, estamos desenvolvendo um projeto de geração cidadã de dados por meio do WhatsApp – o cocozap. As equipes do data_labe, da Casa Fluminense e da Redes da Maré trabalham para construir um canal de denúncia, debate e proposição sobre saneamento básico, por meio de um número do WhatsApp, sobre a coleta de lixo e o esgotamento sanitário na Maré. Vamos receber fotos, vídeos e narrativas, para localizar e ilustrar os desafios de um cotidiano de desigualdades em termos de acesso a serviços públicos. A ideia é produzir uma nova base de dados e construir diagnósticos mais fidedignos do que os indicadores utilizados como oficiais. Quem sabe as soluções também possam ser mais legítimas, baseadas em evidências fornecidas por quem vive os dados mais extremos no território.
O cocozap e o projeto de checagem dos grupos do zap fazem parte do que temos entendido como “revolução periférica dos dados”, que desemboca no engajamento e na capacidade de incidência dos moradores de favelas e periferias nas políticas locais. A ideia central do trabalho que estamos fazendo é disputar a narrativa que se criou em torno dos dados: num extremo, vulnerabiliza os usuários de plataformas digitais, redes sociais e aplicativos de todo tipo; e em outro, credibiliza quem quer que apresente dados para comprovar falácias ou mentiras na rede.
Como jovens sujeitos periféricos, aprendemos a brigar o bom combate – sem cair em simplificações binárias –, usando múltiplas formas de comunicação e sem perder os parâmetros éticos – os dos direitos humanos, da luta pelo fim da desigualdade social, do respeito à diferença e diversidade, pelo fim do preconceito e pela democratização da comunicação. Naturalmente esses não serão parâmetros de todos os grupos que disputam o direito de significar. Os grupos no WhatsApp podem representar a arena onde essas disputas estão sendo travadas. O futuro próximo dirá.
CAMALAÚ NOTÍCIAS/Foto: Reprodução
Cariri Em Ação
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