Uma série de alterações em edital para compra de livros didáticos pelo Ministério da Educação (MEC) está gerando preocupações entre educadores e editoras.
As mudanças retiram dos critérios de avaliação das obras temas como a não-violência contra a mulher, a promoção da cultura dos quilombolas e povos do campo, além da exigência de que as ilustrações contemplem a diversidade étnica da população brasileira.
De acordo com uma fonte do MEC, o assunto foi recebido com surpresa por técnicos da nova gestão, que não tinham conhecimento da edição do documento. A mudança foi publicada no “Diário Oficial da União” no dia 2 de janeiro, mesma data em que o ministro da Educação, Ricardo Vélez, tomou posse oficialmente.
O documento é assinado por Rogério Fernando Lot, presidente-substituto do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) à época, órgão vinculado ao MEC responsável pela compra dos livros didáticos. O novo chefe do FNDE é Carlos Alberto Decotelli da Silva.
Segundo a fonte, Vélez ainda está avaliando as alterações e não decidiu se serão mantidas. “Se houver inconsistências ou for contra as orientações ministeriais, certamente será alterado”, destaca a fonte.
Para profissionais do mercado editorial, a repercussão é uma insegurança jurídica porque a alteração ocorre depois de as obras já terem sido entregues ao MEC para avaliação, em novembro.
Editores e educadores também temem que a mudança seja o início de um retrocesso nas exigências de que as obras contemplem a promoção da cidadania e dos direitos humanos.
Publicado originalmente em março de 2018, o edital do PNLD já sofreu cinco retificações desde então. O MEC, no entanto, não disponibiliza em seu site as versões mais antigas, para permitir a diferenciação entre os textos.
Uma comparação entre a penúltima versão, de outubro de 2018, e a mais recente, de 2 de janeiro de 2019, está circulando entre profissionais do mercado editorial.
No novo texto, foi suprimida, por exemplo, a menção à necessidade de “promover positivamente a imagem da mulher, considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder”, “com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda de não-violência contra a mulher”.
Também foram retiradas menções aos quilombolas e povos do campo, em trecho sobre a promoção da cultura e história desses povos. Um parágrafo que obrigava as obras a estarem isentas de publicidade, marcas, produtos e serviços comerciais foi apagado.
Com relação à qualidade dos livros, foram suprimidos trechos que tratavam da necessidade de que a obra esteja isenta de erros de revisão ou impressão, a necessidade de incluir referências bibliográficas e de que a impressão não comprometa o verso da página.
Uma profissional responsável pela área de PNLD de uma grande editora paulista, que preferiu falar sob anonimato, avalia que a mudança causa insegurança jurídica para as empresas.”Você produziu as obras e inscreveu no programa considerando uma regra e vai ser julgado considerando outra?”, questiona.
Ela lembra ainda que o edital foi feito tendo como referência a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento de referência para os novos currículos do ensino fundamental, já aprovado em 17 Estados e no Distrito Federal.
Para Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), alterações desse tipo atrapalham o papel conscientizador da educação para questões e problemas da sociedade. “O livro didático também serve como estratégia vinculada a políticas sociais e de saúde”, afirma.
Ele também destaca que, caso seja confirmada a retirada do trecho sobre quilombolas e povos do campo, os livros didáticos passarão a pressupor uma visão mais excludente de sociedade.
“Parte significativa da educação é construção de uma identidade que abranja a todos, mas iniciativas como essa quebram essa lógica e contribuem para a construção da ideia de que a sociedade é branca e heterossexual”, afirma.
Em seu discurso de posse, Vélez não detalhou nenhuma medida para a educação, dando ênfase a questões ideológicas. “Combateremos o marxismo cultural, hoje presente em instituições de educação básica e superior. Trata-se de uma ideologia materialista alheia aos nossos mais caros valores de patriotismo e de visão religiosa do mundo”, afirmou.
Vera Cabral, diretora-executiva da Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros), opta pela cautela ao comentar as mudanças. “Antes de fazer qualquer manifestação, queremos ir ao MEC entender o que está acontecendo”, afirma. Ela lembra, no entanto, que vários dos pontos retirados do edital estão amparados pela legislação, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que já proíbe a publicidade direcionada a crianças e adolescentes.
Quanto aos temas ligados à diversidade, Vera acredita que, embora alguns parágrafos tenham sido retirados, outros seguem contemplando a questão. “O fato de ter sido retirado não significa que vão reprovar livros que tratam disso”, acredita. Segundo ela, a principal preocupação das editoras é de fato a insegurança jurídica, com a alteração do edital depois de as obras terem sido entregues ao ministério.
Procurado o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) não se pronunciou até a publicação desta matéria.