Aras nega omissão e admite ir à Justiça se Bolsonaro fizer decretos por isolamento vertical

Cobrado por partidos políticos e por seus próprios pares a se posicionar sobre as ações do presidente Jair Bolsonaro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou em entrevista exclusiva ao GLOBO que é “extremamente injusta” a crítica de que tem sido omisso em meio à crise do coronavírus. Indicado por Bolsonaro ao cargo, Aras afirmou que as manifestações do presidente estão resguardadas pela liberdade de expressão e pela imunidade do seu cargo. Mas disse que poderá recorrer à Justiça se o presidente “vier a baixar um decreto contrariando a orientação da horizontalidade”, em referência ao isolamento recomendado pelo Ministério da Saúde.

O senhor tem sido alvo de acusações de omissão em relação à postura do presidente, que tem contrariado as orientações das autoridades médicas. Como vê essa crítica?

É uma imputação extremamente injusta em razão de tudo que nós temos feito. Não há na história do país quem tenha aplicado uma multa de R$ 800 milhões e ainda condenado um empresário a pena de reclusão de 4 anos (referência à delação do empresário Eike Batista). Não há na história do Brasil nenhum membro na história do Ministério Público que, sem dispensar empresários da prisão, tenha arrecadado R$ 2,5 bilhões e está caminhando para mais R$ 2,5 bilhões, um total de R$ 5 bilhões para contribuir no esforço do combate à Covid-19. Não há quem tenha mobilizado um gabinete de integração contemplando a todos os membros do MPF igualitariamente para apoiá-los no enfrentamento ao Covid-19. Não há em nenhum momento de minha parte nada que seja de omissão. Pelo contrário, trabalho junto com todos os colegas aqui de 10 a 12 horas por dia. Não vou me submeter à partidarização. Eu me manterei fiel à Constituição e às leis. Se alguém quiser me imputar de alguma falha, aponte a norma que eu esteja violando. Essa gestão é igualitária como manda a Constituição, não é para favorecer o partido A, B ou C, não é para fazer escândalo, criminalizando a política e destruindo a economia.

No domingo, o presidente Jair Bolsonaro saiu para visitar feiras populares e teve contato direto com muitas pessoas. O senhor avalia que houve descumprimento legal na ação do presidente?

Vivemos um estado democrático de direito. No Brasil, não foi necessário ainda estabelecer toque de recolher e eu espero que isso não venha a ocorrer. Dessa forma, a mobilidade do presidente, como de qualquer cidadão, está no campo de uma certa vontade de cada um. O presidente tem a sua forma de pensar e não me cabe criticá-lo, mas tão-somente dizer que, do ponto de vista jurídico, a visita do presidente e a sua mobilidade não infringe por enquanto nenhuma lei, nenhuma norma que possa ensejar ao MPF nenhuma atitude.

Mesmo que não esteja infringindo alguma norma, a representatividade dele é muito importante. A partir do momento em que ele vai às ruas e faz apelo para as pessoas voltarem a trabalhar, ele está contrariando o próprio ministro da Saúde. Como o senhor se posiciona nessa situação?

É preciso que nós separemos o Estado brasileiro e o governo. O Estado está funcionando normalmente, basta que você visite o gabinete de crise e vai ver que o Brasil tem profissionais de todas áreas, empenhados 24 horas por dia, de todos os órgãos, no enfrentamento ao Covid-19. É preciso distinguir a figura do presidente da figura do Estado. O Estado está funcionando normalmente e o governo, leia-se o presidente da República, tem liberdade de expressão e goza de certas imunidades. Agora, se o presidente vier a baixar um decreto, qualquer que seja, contrariando a orientação da horizontalidade, estabelecendo a verticalidade ou não, tudo isso é passível, sim, de apreciação judicial. E sendo passível de apreciação judicial, não somente os legitimados poderão recorrer à via judicial, como o próprio Ministério Público.

Mas afinal o senhor é a favor do isolamento vertical ou do isolamento horizontal?

Eu não sou médico, não sou infectologista. Na contemporaneidade, existem algumas formas de enfrentamento de epidemias. Uma delas é a centralidade dos órgãos de Estado, para que não se permita que a desordem converta um desastre natural no caos social. Sobre a verticalidade ou a horizontalidade do isolamento, este é um assunto a ser tratado pelos órgãos do Estado competente, e é o ministro Mandetta o diretor dessa política, que é uma política do Estado. Não é questão de ser contra a favor, a questão é que nós temos uma orientação técnica, que cabe ao ministro da Saúde.

Estamos em estado de calamidade pública. O senhor acha que é possível implantar um estado de sítio?

Está de bom tamanho a calamidade. A calamidade é um ato formal que tem amparo na realidade factual, não há nada de simbolismo, é realidade pura. Precisamos que as pessoas entendam a situação factual, não é brincadeira. É algo que atenta contra a vida de milhares. Eventual avanço para o estado de sítio não me parece pensável, cogitável neste momento porque o estado de sítio envolve comoções sociais.

 O artigo 196 da Constituição fala sobre o direito à saúde e prevê que o Estado tem que garantir a saúde mediante políticas que reduzam o risco de doença. As ações e pronunciamentos do presidente não estão contrários a esse artigo, já que estimular as pessoas a irem às ruas é aumentar o risco de contágio?

Temos no plano eminentemente técnico uma Constituição principiológica, que estabelece diretrizes gerais. A regra da saúde é principiológica. Ela tem uma diretriz, ela tem uma eficácia difusa. Ela é também um elemento de hermenêutica constitucional, favorece a interpretação, mas ao lado dessa diretriz nós temos normas e regras. As normas podem ser princípios como esta que garante a saúde como um direito de todos e um dever de estado. Mas temos regras mais densas, a exemplo da imunidade material (do presidente), que é uma regra, ela é objetivamente densa, fechada. Isto é preciso que o jurista ou constitucionalista esteja atento. É neste ponto que nós no exercício do cargo de procurador-geral da República estamos atentos, separando o governo de Estado, mantendo o Ministério Público nos seus limites da Constituição. É preciso ler a Constituição como uma carta política que estabelece acima de tudo limites, limites às instituições, limites às autoridades. Então nós temos que ter limites para que nós não estejamos legislando no lugar de parlamentares, não estejamos ousando gerir a coisa pública.

Qual é o limite dessa imunidade?

Boa pergunta. o Supremo tem estabelecido limites. O limite é o próprio exercício do mandato, no caso dos parlamentares, e no caso do presidente os limites são sua função no cargo. Aí que é nosso desafio, saber o que é ato político, ato de governo, ou fato que tem repercussão jurídica e de relevo para a a sociedade. Esses últimos merecem apreciação da Justiça. é exatamente esse o desafio que eu conclamo membros do Ministério Público a estarem atentos.

Procuradores do MPF na primeira instância ajuizaram ações e até derrubaram trechos de decreto do presidente. O senhor concorda com essas ações?

Os membros do Ministério Público devem respeito à sua unidade institucional, mas também têm independência funcional. A par disso, deve se observar o devido processo legal. Os membros do MPF que, à falta de uma orientação de órgãos superiores, moverem ações em primeira instância se submeterão ao devido processo legal. Isso significa dizer direito ao juiz natural, imparcial, ao contraditório e à ampla defesa, direito aos recursos e inclusive a revisão desses atos pelos tribunais superiores. Essa é a regra. Agora, é importante lembrar que nós não temos ainda em funcionamento o Comitê Nacional de Órgãos de Controle e Fiscalização. Existe um projeto de lei que congrega presidente do STF, PGR, presidente do TCU, ministro da AGU e defensor público federal como órgãos de centralidade indispensáveis ao enfrentamento das epidemias, para evitar que haja tumultos de ações, decisões, que haja uma confusão.

O senhor discordou então dessas ações?

Não, porque cada procurador no universo do estado de direito ainda deve agir na sua perspectiva da unidade e da autonomia. O que houve foi a iniciativa direta e individual de cada membro da propositura dessas ações. Chegando em grau de recurso à PGR, nós iremos nos manifestar.