‘Vou cumprir o que a lei pedir’, diz ex-patroa indiciada após morte de Miguel

“Eu sinto que eu fiz tudo que eu podia e, se eu pudesse voltar no tempo, eu voltava. Se eu soubesse que tudo isso ia acontecer, eu voltava e ainda tentava fazer mais do que eu fiz naquela hora”. O depoimento é de Sari Gaspar Corte Real, ex-patroa da mãe de Miguel Otávio de Santana, de 5 anos, que caiu do 9º andar do prédio de luxo no Centro do Recife. A primeira-dama de Tamandaré (Litoral Sul) era responsável por cuidar da criança, quando o acidente aconteceu (veja vídeo acima).

Em entrevista ao Fantástico, no escritório dos advogados dela, também no Centro do Recife, Sari falou pela primeira vez à imprensa sobre o que ocorreu no dia 2 de junho, data da morte de Miguel.

Na quarta-feira (1º), ela foi indiciada pela polícia por abandono de incapaz que resultou em morte. O Ministério Público recebeu o inquérito na sexta-feira (3) e, agora, deverá decidir se oferece a denúncia contra a primeira-dama à Justiça.

Miguel caiu do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife. A mãe dele, Mirtes Souza, o deixou com a ex-patroa para passear com Mel, a cadela da família.

Segundo a polícia, a criança saiu do apartamento de Sari para procurar a mãe e foi até os elevadores do condomínio. Imagens das câmeras de segurança mostram que, por pelo menos quatro vezes, a primeira-dama de Tamandaré conseguiu convencer Miguel a sair dos equipamentos de social e de serviço.


Na quinta tentativa, o menino entrou no elevador de serviço, e a patroa da mãe pareceu apertar o botão da cobertura. Esse toque, segundo a perícia, aconteceu. Na sequência, Miguel apertou vários botões e ficou sozinho no elevador, que parou no segundo andar, mas o menino não desceu.

No nono andar, o menino saiu do elevador e abriu uma porta. Segundo a polícia, ele escalou uma janela, usou a condensadora de ar-condicionado como escada para descer do outro lado e subiu numa grade. Uma das hastes se soltou e, com isso, ele caiu de uma altura de 35 metros.

Segundo Sari, Miguel teria aberto sozinho a porta do apartamento para ir atrás da mãe. “Ele corre para o elevador, chama o elevador, num instante ele chega. Aí, quando abre a porta, eu digo ‘Miguel, você não vai descer, volta pra casa, espera sua mãe'”, afirmou a primeira-dama de Tamandaré.

Sari Corte Real teria apertado botão da cobertura do elevador — Foto: Reprodução/TV Globo

Sari Corte Real teria apertado botão da cobertura do elevador — Foto: Reprodução/TV Globo

Ela disse, ainda, que não apertou o botão da cobertura no elevador. “Eu só botei a mão, fazendo como se eu fosse acionar. Para ver se eu conseguia convencer ele a sair, se dessa forma ele achasse que ia ficar lá e fosse sair”, declarou.

A primeira-dama disse ainda que não passou pela cabeça dela o risco que o menino, de 5 anos de idade, poderia correr ficando sozinho no elevador.

“Eu não achei que seria essa tragédia. Eu acreditei que ele voltaria para o andar, que ele voltaria para o quinto andar, até porque ele sabia o número, eu acreditei que ele voltaria para o andar”, disse.

Diante das afirmações de Sari, Mirtes Souza, por sua vez, afirmou que, por ser tão pequeno, o filho não conhecia os números. Por morar numa comunidade pobre e ser filho de uma empregada doméstica, sequer tinha familiaridade com elevadores.

“Miguel tinha um pouco de dificuldade com alguns números. Ele tinha facilidade com 0, 1, 2, 4, 7 e alguns números a gente tinha que dizer a ele como fazia ou escrever do lado para ele copiar. Ele não sabia andar de elevador. Nas pouquíssimas vezes que ele andou de elevador, sempre estava acompanhado tanto por mim quanto pela minha mãe”, explicou.

Polícia Civil concluiu o inquérito sobre a morte do menino Miguel na quarta-feira (1º) — Foto: Reprodução/YouTube

Polícia Civil concluiu o inquérito sobre a morte do menino Miguel na quarta-feira (1º) — Foto: Reprodução/YouTube

No inquérito da Polícia Civil, o delegado Ramon Teixeira, responsável pelas investigações, afirma que, quando a porta do elevador se fechou, Sari voltou para o apartamento e não acompanhou a movimentação de Miguel para saber se ele estava subindo ou descendo.

Essa informação poderia ser conferida pela moradora pelo visor que fica do lado de fora do elevador, mas a primeira-dama informou que não olhou o painel, porque estava ligando para a mãe do menino.

“Na mesma hora eu liguei pra Mirtes, mas, ao mesmo tempo, eu estava tentado acalmar a minha filha, que também estava desesperada com a situação. Eu me via ali, naquela situação, com aquela movimentação. Minha filha, ele, eu me senti ali, sem conseguir falar com Mirtes, com a minha filha. Foi tudo muito rápido”, disse.

Sari afirmou que não se sentia segura para repreender o menino mais firmemente, porque ela sempre pedia que a mãe dele ou a avó, Marta Souza, que também era doméstica na casa da família Corte Real, fizessem isso.

Miguel Otávio, de 5 anos, morreu ao cair do 9º andar de edifício no Recife — Foto: Reprodução/Facebook

Miguel Otávio, de 5 anos, morreu ao cair do 9º andar de edifício no Recife — Foto: Reprodução/Facebook

“O maior contato que eu tive com Miguel foram nesses dois meses, na pandemia, quando, em conjunto, elas [Mirtes e Marta Souza] decidiram ir para lá para casa, que a gente [levou] todo mundo lá. E todas as vezes que precisou ser chamada a atenção dele eu solicitava que ou a mãe ou a avó fizesse isso. Eu nunca me dirigi diretamente a ele para repreender ele em nada, sempre à mãe ou à avó. Eu não me senti segura para isso”, declarou.

No dia da morte de Miguel, Sari foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. No final do inquérito, a polícia mudou a tipificação para abandono de incapaz que resultou em morte. Esse tipo de delito é considerado “preterdoloso”, que é quando alguém comete um crime diferente do que planejava cometer.

“Eu só sei que eu fiz, naquela hora tudo o que eu podia e, em nenhum momento, eu fiz nada prevendo o que aconteceu”, declarou.

Sari Corte Real afirma que não esperava a mudança de tipificação, mas que pretende aceitar a decisão da Justiça sobre o caso. “Eu acho que do mesmo jeito que eu posso errar, outra pessoa também pode errar. A gente é ser humano, todo mundo erra”, disse.

“Eu já passei muita coisa na minha vida. Já tive tentativa de sequestro, já perdi meu pai num acidente de avião. Até hoje estou aqui, firme, porque muita gente depende de mim. Se, lá na frente, o resultado for esse [de prisão], eu vou cumprir o que a lei pedir. Eu acho que está na mão da Justiça, não cabe a mim, não cabe à mãe de Miguel julgar, não cabe à sociedade. Cabe à Justiça. Eu vou aguardar o que a Justiça decidir”, declarou.

Sari informou, ainda, que pediu perdão à mãe de Miguel. A manicure dela, que estava no apartamento no momento em que o caso ocorreu, afirmou à polícia que a primeira-dama quis voltar a fazer as unhas depois de tentar que o garoto saísse do elevador.

A primeira-dama afirma, no entanto, que sequer teve tempo de sentar. “Jamais [voltaria a fazer as unhas]. Não, naquela situação não tinha como, não tinha cabimento. Não tinha cabimento um negócio desse”, afirmou.

Para Sari, o erro cometido por ela foi o de não desconfiar do risco trazido pelo ato de deixar o menino sozinho. “Eu acho que o meu erro foi fazer igual a eu fazia com o meu filho, de achar que o elevador é seguro”, disse.

Mirtes Souza, mãe do menino Miguel, ao encontrar o filho no chão depois de cair do 9º andar — Foto: Reprodução/TV Globo

Mirtes Souza, mãe do menino Miguel, ao encontrar o filho no chão depois de cair do 9º andar — Foto: Reprodução/TV Globo

De acordo com a mãe de Miguel, ela só soube que a ex-patroa poderia estar envolvida no que ocorreu posteriormente. Até o momento em que ela estava no Hospital da Restauração, no Centro do Recife, para onde o menino foi socorrido, Sari não havia informado a Mirtes o que tinha acontecido.

“No primeiro momento, o que eu imaginei foi em socorrer, o que a gente podia fazer por ele. Eu dirigi, só Deus sabe como eu dirigi. Nunca cheguei tão rápido na minha vida num hospital. Eu fiquei com ela [Mirtes Souza] lá até por volta de 16h30 ou 16h45. Foi quando eu tive que vir para casa, porque minha amiga precisava voltar para casa e eu precisava ficar com Sofia [a filha dela]”, afirmou.

Doméstica

Para a doméstica Mirtes Souza, o filho era o bem mais precioso. A dor da morte de Miguel, segundo ela, só faz aumentar. “E pensar que eu ainda tenho o resto da vida sem ele é o que dói mais ainda. Está muito difícil olhar para cada cantinho desta casa e não ter meu filho junto comigo. E cada dia que passa é mais difícil, mais difícil”, disse.

“Ela foi irresponsável com o meu filho. Ela não cuidou do meu filho. No momento que ela deixa o meu filho no elevador, em nenhum momento ela se preocupou em saber para qual andar o meu filho foi”, afirmou Mirtes Souza.

Para Mirtes Souza, perdoar Sari não é possível. “Eu agora não tenho mais meu filho. Eu não tenho mais meu neguinho por conta da irresponsabilidade dela, por conta da vaidade dela. Eu não tenho mais meu filho. Ela, hoje, tem dois filhos, graças a Deus. Eu não tenho mais nenhum para dar amor, carinho, atenção. Dar dengo, como eu dava ao meu filho, dar carinho ao meu neném”, lamentou.

Investigação e defesa

Não fica claro, pelas imagens da câmera de segurança do elevador, se Sari apertou o botão da cobertura. Entretanto, o delegado Ramon Teixeira afirma que esse fato não é o mais relevante para a investigação.

“Independentemente da ação, da conduta de pressionar ou não a tecla da cobertura, o que nós entendemos de relevante, já no ato de delito dela, foi o que nos manteve, ainda assim, firmes no sentido de que aquela conduta omissiva, de permitir o fechamento da porta, aquilo, sim, tem valor jurídico penal bastante relevante. Inclusive para responsabilização penal”, explicou o delegado.

O depoimento da manicure, de que Sari, enquanto tentava ligar para Mirtes Souza, tentava retomar o tratamento das unhas, também é importante, no entendimento da polícia.

“Outros elementos de informação bastante importantes paro desfecho do caso, a exemplo do depoimento da manicure que lá trabalhava, de que a moradora retorna ao seu apartamento para a retomada dos serviços de manicure, tratamento e embelezamento das suas unhas, quando rapidamente acontece a tragédia”, afirmou Ramon Teixeira.

No dia em que Sari Corte Real prestou depoimento à polícia, a Delegacia de Santo Amaro, no Centro do Recife, abriu às 6h, duas horas antes do expediente normal. Mirtes Souza também esteve no local e confrontou a primeira-dama.

A Polícia Civil justificou que a abertura mais cedo ocorreu por pedido da defesa, que temia aglomerações e algum tipo de agressão contra a primeira-dama.

Mãe do menino Miguel, Mirtes Renata aguardando saída da ex-patroa da Delegacia de Santo Amaro, no Recife — Foto: Marina Meireles/G1

Mãe do menino Miguel, Mirtes Renata aguardando saída da ex-patroa da Delegacia de Santo Amaro, no Recife — Foto: Marina Meireles/G1

Para o advogado Célio Avelino, um dos responsáveis pela defesa de Sari, a primeira-dama de Tamandaré não cometeu crime. “Abandono é aquela vontade de abandonar aquele incapaz, seja uma criança, seja um idoso. É a vontade consciente de abandoná-lo no elevador. Ela não teve essa vontade. Ela não conseguiu demovê-lo de ficar no elevador”, alegou.

Entretanto, segundo Thiago Bottino, professor de direito penal da Fundação Getúlio Vargas, a mudança de tipificação do crime trouxe um maior rigor ao caso.

“Abandono de incapaz significa deixar de cuidar de alguém que estava sob sua vigilância. No momento em que essa criança de 5 anos entra num elevador sozinha, ela é abandonada a própria sorte. Poderia não ter ocorrido nenhum resultado mais grave, mas neste caso ocorreu. E esse resultado mais grave, embora não fosse desejo da pessoa que abandonou, ela vai ser responsabilizada por esse resultado, em razão do comportamento anterior, que foi de abandono. Nesse caso específico, se houvesse apenas o abandono, a pena seria uma. Se houvesse apenas lesão corporal, a pena seria outra. Como houve morte, temos uma pena bem alta, de 4 a 12 anos, que é bem maior do que a pena de homicídio culposo, que é de 1 a 3 anos”, explicou.

Mãe do menino Miguel aparece como funcionária comissionada na prefeitura de Tamandaré — Foto: Reprodução/Portal da Transparência de Tamandaré

Mãe do menino Miguel aparece como funcionária comissionada na prefeitura de Tamandaré — Foto: Reprodução/Portal da Transparência de Tamandaré

Funcionárias-fantasma

Depois da tragédia, veio à tona uma irregularidade na prefeitura de Tamandaré, envolvendo o marido de Sarí, o prefeito Sérgio Hacker (PSB). Mirtes e a mãe dela, Marta, trabalhavam como domésticas para a família do prefeito, mas eram pagas pela prefeitura. Na quinta-feira (2), o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) determinou o bloqueio parcial dos bens do prefeito e secretária de Educação, Maria da Conceição Cavalcanti.

Além disso, na quarta-feira (1º), o Ministério Público de Pernambuco entrou com uma ação para que o prefeito responda por improbidade administrativa. Desde a morte de Miguel, a mãe e avó do menino não receberam sequer um centavo. A advogada trabalhista Karla Cavalcanti afirmou que o caso foi judicializado.

“Judicializamos, pedimos as verbas rescisórias, o reconhecimento do período contratual delas, pagamento de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), de 13º salário, de tudo que corresponde à indenização da dispensa do funcionário”, declarou.

A reportagem procurou o prefeito, que afirmou, por meio de nota, que não foi comunicado oficialmente da ação judicial e que vai recorrer da determinação de indisponibilidade de bens, porque considera uma medida “completamente desnecessária”.

Caso Miguel: Laudo pericial aponta que ex-patroa apertou botão do elevador para cobertura

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Caso Miguel: Laudo pericial aponta que ex-patroa apertou botão do elevador para cobertura

Fotos perdidas

Na sexta-feira (3), a doméstica Mirtes Renata declarou que sua conta no Instagram foi hackeada. Segundo ela, todas as fotos foram apagadas do perfil.

Ela contou que desapareceram algumas fotos de Miguel, que só eram encontradas nessa rede social. Ela disse ainda que uma sobrinha tentou recuperá-las, mas não conseguiu.

Mirtes Renata, mãe de Miguel, de 5 anos, afirmou que conta em rede social foi alvo de hackers — Foto: Reprodução/TV Globo

Mirtes Renata, mãe de Miguel, de 5 anos, afirmou que conta em rede social foi alvo de hackers — Foto: Reprodução/TV Globo

As fotos foram apagadas no dia 25 de junho. A Polícia Civil ainda não foi acionada, segundo Mirtes, até a última atualização desta reportagem.

Em entrevista ao G1, Mirtes disse não saber se as fotos sumiram por causa de uma ação dolosa de alguma pessoa ou se o responsável queria pegar as imagens.

Auxílio emergencial

O nome de Sari Gaspar Corte Real aparece no portal Dataprev após um pedido de auxílio emergencial, benefício concedido durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus.

Segundo o Dataprev, o auxílio emergencial foi solicitado em 14 de maio. O portal recebeu o pedido no dia seguinte. Os dois filhos de Sari, de 6 e 3 anos de idade, estão cadastrados como parte do grupo familiar. A defesa dela informou, por telefone, que a solicitação de auxílio emergencial feita em nome dela é uma fraude.

Manifestantes se reuniram na frente das Torres Gêmeas, de onde Miguel Otávio caiu — Foto: Pedro Alves/G1

Manifestantes se reuniram na frente das Torres Gêmeas, de onde Miguel Otávio caiu — Foto: Pedro Alves/G1

Homenagens

O caso ganhou repercussão nacional, com manifestações de políticos e artistas na internet e criação de um abaixo-assinado virtual com mais de 2,5 milhões de assinaturas pedindo justiça por Miguel.

No dia 12 de junho, durante um ato em frente ao prédio de onde Miguel caiu, manifestantes levaram cartazes com pedido de justiça e caminharam até a delegacia onde o caso é investigado. Eles pediram que a ex-patroa da mãe do menino fosse punida por homicídio doloso, quando há intenção de matar.