Um dia após anúncio de vacina, Rússia altera dados sobre testes em base internacional

Quando a vacina russa foi anunciada, constava publicamente o registro de apenas uma primeira fase de testes iniciados em 17 de junho, com 38 pessoas, ainda em andamento — o que levantou críticas de cientistas de todo o mundo.

Nesta quarta (12), as informações sobre os experimentos com humanos da vacina da Rússia passaram a incluir também uma segunda fase, concomitante à primeira. Agora, consta que os estudos foram finalizados no dia 3 de agosto, mas não há informação sobre conclusões dos testes.

Na prática, a validação de vacinas envolve três fases: as duas primeiras avaliam a segurança do princípio ativo, e a última testa a efetividade vacinal e a manutenção da resposta imune nas pessoas que integram o experimento. Até a conclusão desta reportagem, não havia registro de uma terceira etapa de testes da vacina da Rússia.

Os dados estão na plataforma internacional Clinical Trials, que agrega informações detalhadas sobre experimentos com humanos no mundo todo (como local, quantas pessoas são pesquisadas, duração do experimento e metodologia aplicada).

Faz parte da metodologia científica a publicação de informações sobre cada etapa dos testes de vacinas na Clinical Trials, assim como a divulgação dos resultados nas diferentes fases do experimento — coisa que a Rússia não fez.

“Se havia informação sobre uma nova fase de pesquisa clínica, isso já estava disponível quando o governo russo fez o anúncio da vacina. Por que tornaram público somente agora?”, questiona a microbiologista e pesquisadora da USP Natália Pasternak.

“E, se estão afirmando que finalizaram duas fases dos testes, cadê os resultados?” 

Na prática, não se sabe o que aconteceu com as 38 pessoas que teriam participado dos testes com a Sputnik V.

Os experimentos russos estão em nome do Instituto Gamaleya, ligado ao Ministério de Saúde daquele país. É uma espécie de Fiocruz da Rússia. Os testes não seguem, de acordo com o registro, a metodologia duplo-cego, na qual nem médicos nem pacientes sabem o que estão fornecendo ou recebendo, se o produto em teste ou um placebo. É o “padrão ouro” nas pesquisas clínicas.

O que se sabe é que os cientistas russos trabalham com adenovírus, que causam gripes em chimpanzés e humanos, como vetores para “carregar” proteínas do Sars-CoV-2 para as células humanas — o que estimula a produção de anticorpos contra o novo coronavírus. Não há nenhuma imunização no calendário vacinal com essa nova tecnologia.

A proposta é a mesma em teste pela Universidade de Oxford (Reino Unido) — uma das apostas da ciência mundial contra a Covid-19. As pesquisas estão em fase 3. “Essa etapa de avaliação da imunização e da manutenção da resposta imune pode levar alguns meses”, ressalta Mellanie Fontes-Dutra, pesquisadora da UFRGS. Só depois de concluída essa etapa dá para saber se a vacina, de fato, funcionou.

Desde o início da pandemia, a Rússia soma 39 registros de pesquisas com humanos na Clinical Trials. São 20 drogas contra Covid-19 em teste com pacientes (inclusive em colaboração internacional com países como EUA, Itália e Brasil), 8 testes de novos diagnósticos, 10 procedimentos médicos e 1 vacina — a Sputnik V.

O número é pouco expressivo. O Brasil tem quase o dobro de testes clínicos registrados relacionadas ao novo coronavírus (76 até agora). Os Estados Unidos, que lideram em número absoluto as pesquisas sobre Covid-19 no mundo, já somam mais de 600 testes com pessoas. Um deles é do laboratório Moderna — que, no mesmo dia do anúncio da Sputnik V, anunciou a venda de 100 milhões de doses ao governo norte-americano (mesmo ainda sem resultados conclusivos).

França, Itália, Espanha, Reino Unido, China e Egito também estão entre os países com mais de uma centena de registros de experimentos de drogas e vacinas para Covid-19 envolvendo humanos.

As instituições de pesquisa da Rússia somam 175 artigos artigos científicos sobre Covid-19 — o que corresponde a menos de 1% de todo conhecimento científico no contexto da pandemia. Isso coloca os russos em 35º lugar no ranking de publicações sobre Covid-19, atrás de países de pouca tradição em pesquisa como o Paquistão (28º lugar). As informações são da plataforma internacional de periódicos científicos Web of Science.

Para termos de comparação, os cientistas do Brasil já contam 700 artigos científicos sobre o novo coronavírus (quase 3% da produção mundial), ocupando 11º lugar no ranking mundial de publicações sobre Covid-19. Quem lidera a lista são os Estados Unidos, seguidos pela China e pela Itália.

Em termos de expertise científica acumulada sobre imunização, a Rússia também patina. Nos últimos dez anos, o país contabilizou cerca de mil trabalhos científicos publicados sobre vacinas em geral -um quarto do total produzido pelo Brasil no mesmo período. Novamente, quem lidera essa produção são os Estados Unidos, com a vantagem competitiva de mais de 50 mil trabalhos acadêmicos sobre vacinas na última década.