Nesta segunda-feira (31), o RJ2, o Jornal Nacional e o Jornal da Globo mostraram um esquema com funcionários comissionados da Prefeitura do Rio — com salários de até R$ 10 mil — para atrapalhar o trabalho da imprensa.
Os assessores cumpriam escala na porta de hospitais municipais e, tão logo percebiam que equipes de reportagem entravam ao vivo com algum tema que os contrariassem, interrompiam a reportagem — às vezes aos gritos.
Ao longo da noite de segunda e da madrugada desta terça (1), vários desses comissionados saíram do grupo do WhatsApp onde eram estabelecidas as escalas de trabalho e onde eram postadas comprovações das intervenções.
Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o ML — que aparece nas conversas dando ordens — ainda alertou os participantes do grupo.
“Gente, não é para sair do grupo, nunca houve nada errado aqui”, disse ML.
A organização tem escalas diárias, horários rígidos e ameaças de demissão.
Após veiculação de reportagem sobre os ‘Guardiões do Crivella’, grupo do Whatsapp sofre debandada de participantes — Foto: Reprodução/ TV Globo
Resumo
A reportagem mostrou que:
- por grupos de Whatsapp, funcionários públicos são distribuídos por unidades de saúde municipais para fazerem uma espécie de plantão;
- em duplas, eles tentam atrapalhar reportagens com denúncias sobre a situação da saúde pública e intimidar cidadãos para que não falem mal da prefeitura;
- O RJ teve acesso ao conteúdo dos grupos e viu que, após serem escalados, eles postam selfies para dizer que chegaram às unidades;
- um dos funcionários aparece em várias fotos ao lado de Crivella e tem salário de mais de R$ 10 mil;
- quando conseguem atrapalhar reportagens, eles comemoram nos grupos;
- a prefeitura não nega a criação dos grupos e diz que faz isso para ‘melhor informar a população.
Entre os participantes de um dos grupos, um telefone chama a atenção. O número aparece registrado como sendo do próprio prefeito, Marcelo Crivella. O Jornal Nacional apurou que o prefeito já usou esse número. A equipe de reportagem ligou, mas ninguém atendeu.
“O prefeito, ele acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que ele escreve lá: ‘Parabéns! Isso aí!’”, contou à TV Globo um dos participantes dos grupos.
Funcionários da Prefeitura do Rio tentam impedir a imprensa de mostrar queixas de cidadãos
Funcionários mandam selfies para dizer que chegaram aos hospitais — Foto: Reprodução/TV Globo
As ‘invasões’
Em uma entrevista ao vivo para o Bom Dia Rio em 20 de agosto, no Hospital Rocha Faria, dona Vânia cobrava uma transferência para a mãe que tem câncer, mas não conseguiu terminar a conversa com a repórter Nathália Castro porque dois homens começaram as agressões verbais e gritos de “Bolsonaro”.
A repórter pediu desculpas para Vânia, encerrou a reportagem e as agressões dos dois homens continuaram, gerando uma confusão.
Dias depois, no Hospital Rocha Faria, o repórter Ben-Hur Corrêa falava da falta de equipamentos de raios-x e da situação do caixa da prefeitura, quando dois homens impediram a reportagem.
Em seguida, um dos homens botou o crachá e foi em direção ao interior do hospital.
Os ataques não acontecem por acaso. Ao contrário: são organizados e pelo poder público.
Os agressores são contratados da prefeitura do Rio. Recebem salários pagos pelo contribuinte para vigiar a porta de hospitais e clínicas, para constranger e ameaçar jornalistas e cidadãos que denunciam os problemas na saúde da capital fluminense.
Servidores conhecidos como ‘guardiões do Crivella’ atrapalham reportagens nos hospitais
Nesta segunda-feira (31), o repórter Paulo Renato Soares fazia uma entrevista na porta do Hospital Salgado Filho, no Méier. Ao primeiro sinal de que a gestão da saúde poderia ser criticada, o entrevistado foi interrompido (veja no vídeo acima).https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
- Funcionário da prefeitura: “Fala isso não, meu querido”.
- Entrevistado: “Oi?”
- Funcionário da prefeitura: “Fala isso não, cumpadre”.
- Entrevistado: “Como, perdi um dedo, não posso falar?”
- Funcionário da prefeitura: “Fala isso não, meu irmão”.
- Entrevistado: “Não tô falando do hospital, não. Estou falando de Rocha Miranda”.
- Funcionário da prefeitura: “Você foi bem atendido, não foi?”
- Repórter: “Ele [o entrevistado] não pode falar da saúde?”
- Funcionário da prefeitura: “Não”.
- Repórter: “O senhor pode deixar ele falar da saúde?”
- Funcionário da prefeitura: “Está tudo indo bem, meu querido”
O repórter, então, começa a confrontar o funcionário:
- Repórter: “O senhor é o senhor José Robério Vicente”.
- Funcionário da prefeitura: “O hospital está tudo certinho, meu querido. O prefeito está trabalhando correto e bem.”
- Repórter: “Quem está trabalhando bem?”
- Funcionário da prefeitura: “Com certeza, o prefeito está trabalhando bem. Na saúde. Que negócio é esse, rapaz?”
José Robério, um dos funcionários da prefeitura que invadiu reportagens — Foto: Reprodução/Globo
José Robério Vicente Adeliano foi admitido na prefeitura em novembro de 2018, em “cargo especial”. O salário bruto é de R$ 3.229.
Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018, como assistente 3 e salário de R$ 3.422.
Dupla posta foto na ‘ronda’ pelos hospitais — Foto: Reprodução/TV Globohttps://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018 — Foto: Reprodução/TV Globo
Guardiões
Os dois fazem parte de um grupo que se apresenta em um aplicativo de mensagens como “Guardiões do Crivella”. Para cumprir a tarefa de tentar calar a população e a imprensa, os guardiões têm até escala.
O RJ2 teve acesso às conversas desse e de outros dois grupos. Um identificado como Assessoria Especial GBP — gabinete do prefeito — e o outro, como Plantão.
É por esses grupos que os funcionários da prefeitura ficam sabendo pra onde vão – em duplas ou sozinhos – para cumprir o dia de trabalho e impedir que se mostrem as dificuldades na saúde.
Quando chegam nas unidades, ainda de madrugada, precisam registrar a presença. Na rotina, todos os dias têm que mandar selfies do lugar onde estão: “Hospital Souza Aguiar, cheguei cedo”; “Bom dia companheiros, mais um dia no Albert Schweitzer”; “Equipe Pedro 2º”; “Hospital Evandro Freire – Beto e Dani” foram algumas mensagens postadas.
Em uma foto aparecem Robério e Ricardo Barbosa, que a TV Globo encontrou no Salgado Filho, mostrando que estavam a postos.
Depois de bater essa espécie de ponto, os funcionários públicos monitoram e relatam tudo o que acontece na porta das unidades de saúde. Principalmente a chegada dos jornalistas.
Foi assim, na quinta-feira (27), quando a equipe da Globo esteve no Rocha Faria. Eles ficam sempre com o celular na mão, fazem vídeos dos jornalistas, estão sempre perto da reportagem e esperam o momento de agir.
Os escalados naquele dia eram:
- Marcelo Dias Ferreira, desde setembro de 2018 na prefeitura com cargo especial e salário bruto de R$ 2.788.
- Luiz Carlos Joaquim da Silva, o Dentinho, contratado em dezembro de 2019 com salário bruto de R$ 4.195, em cargo especial.
Marcelo Dias Ferreira tem cargo especial e salário bruto de R$ 2.788 — Foto: Reprodução/TV Globo
Luiz Carlos tem cargo especial na prefeitura e recebe mais de R$ 4 mil — Foto: Reprodução/TV Globo
Luiz Carlos Joaquim da Silva, o Dentinho, ao lado de Crivella em foto — Foto: Reprodução/TV Globo
Dentinho tem várias fotos com Crivella nas redes sociais desde a campanha para a prefeitura. É ele também que impede a entrevista com dona Vânia (citada no inicio da reportagem ao cobrar uma transferência para a mãe com câncer).
Bronca após atraso
‘ML’ dá bronca porque equipe não conseguiu atrapalhar reportagem da Globo: ‘muito triste’ — Foto: Reprodução
Na quinta-feira (27), no entanto, os vigias estavam atrasados. Não viram o repórter Ben-Hur entrar ao vivo, ainda muito cedo, o que provocou irritação e cobrança nos grupos.
Alguém identificado apenas como ML manda a foto da reportagem e escreve: “A Globo está no Rocha. Cadê a equipe do Rocha? Mateus, liga pra equipe do Rocha”.
Mateus responde: “Sim, senhor”.
ML, de novo, questiona: “Quem está no Rocha?? Gente, muito triste, não derrubamos a matéria (…) Não pode haver falta, nem atraso. Falhamos no Rocha Faria. Inaceitável”.
Depois da bronca, além dos dois escalados, chegou um reforço: outra dupla de agressores.
Eles atrapalharam a continuação da reportagem – e comemoraram:
“Eu acho que não é ao vivo. Acho que estão fazendo matéria pra mais tarde, mas tentaram entrar várias vezes e nós interrompemos por essas vezes todas aí”, diz um deles, em um áudio enviado no grupo.
ML – que aparece no grupo – está sempre dando ordens. “Marquem durinho aí, hein. Não dá mole pra eles, não”, diz em uma das mensagens.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html
ML é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o Marcos Luciano. Outro que divulga várias fotos com o prefeito.
Em 2018, Marcos Luciano ganhou uma moção de aplausos e louvor na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), a pedido da deputada Tia Ju, do Republicanos, o mesmo partido de Crivella.
O currículo de Marcos, apresentado na época, revela a proximidade dele com o prefeito. Trabalhou como missionário com Crivella na África e no Nordeste do Brasil, foi um dos coordenadores das campanhas eleitorais do bispo ao Senado e à prefeitura.
Desde 2017, Marcos Luciano é assessor especial do gabinete do prefeito. Em julho, o salário foi de R$ 10,5 mil.
“O sistema todo é chefiado pelo doutor Marco Luciano. Doutor Marco Luciano é um amigo do Crivella. É o chefão geral, tá? Não sei se ele é parente, se é da Igreja Universal, não sei, não, mas sei que ele é muito chegado. É uma pessoa de extrema confiança do prefeito Crivella.”
A fala é de um dos contratados da prefeitura que fez parte do esquema para vigiar a porta dos hospitais. Ele diz que era intimidado pelos chefes.
“Todo tempo, ameaça é de demissão. Quando eles fazem reuniões com a equipe, ninguém pode entrar de celular e passam detectores de metal em cada funcionário e as reuniões são geralmente na prefeitura, e é muita ameaça.”
‘Missão’ antiga, intensificada na pandemia
O homem conta ainda que a tática foi adotada no fim do ano passado e aumentou durante a pandemia.
“Nós temos essa missão lá já há mais de 8 meses. Antes, já estava funcionando, mas quando entrou a Covid em março, ficou todos os dias. Existe plantão nas unidades para poder cercear a imprensa”, conta.
O que diz a prefeitura
Em nota, a Prefeitura do Rio diz que “reforçou o atendimento em unidades de saúde municipais no sentido de melhor informar à população e evitar riscos à saúde pública, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde”.