Apenas 1 em cada 4 matriculados em programas de mestrado e de doutorado no Brasil é negro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A ciência produzida no Brasil é branca – e, em algumas áreas do conhecimento, é mais branca ainda. Um retrato da pós-graduação do país mostra que, em média, um em cada quatro matriculados em programas de mestrado e de doutorado é negro. Em áreas como medicina, a participação dos negros cai para um em cada dez cientistas em formação.

As informações raciais foram tabuladas pela Folha de S.Paulo a partir de uma base de dados abertos de 2018 da Capes, agência do MEC voltada à pós-graduação no país. Foram considerados nos cálculos apenas os alunos de pós-graduação do país que informaram a cor da pele –o que é feito de maneira autodeclarada.

Olhar para a pós-graduação no Brasil é importante porque cientistas em formação produzem boa parte do conhecimento nacional. Isso acontece por meio de bolsas de pesquisa –uma espécie de “salário” pago por agências de fomento aos pós-graduandos para que trabalhem integralmente com ciência.

Os dados mostram que em algumas áreas da saúde (como odontologia e medicina), em direito, engenharias e em arquitetura –consideradas “de elite”– a participação dos negros entre pós-graduandos despenca.

“Já fui a única negra apresentando uma pesquisa em uma sala com 24 cientistas em um congresso acadêmico”, diz Thays Torres Oliveira, mestranda na Ufpel (Universidade Federal de Pelotas) em clínica odontológica –uma das áreas mais embranquecidas da ciência nacional.

Oliveira chegou na universidade há dez anos, vinda do Maranhão, para cursar odontologia. Encontrou apenas um colega negro na turma (de 44 alunos) e uma veterana negra. Na época, não havia nenhum docente preto ou pardo no curso.
Hoje, na pós-graduação, ela encontra mais pares negros –incluindo um colega do Cabo Verde. Desde 2017, a Ufpel reserva 20% das vagas dos mestrados e doutorados para cientistas negros em formação.

A medida foi uma resposta a uma portaria de maio de 2016 –última assinatura da presidente Dilma Rousseff (PT) antes do impeachment. O texto previa que universidades federais criassem sistemas de reserva de vagas para alunos negros, indígenas e pessoas com deficiência nos mestrados e doutorados.

Simbolicamente, a revogação da portaria, em junho deste ano, também foi o último ato do então ministro da Educação Abraham Weintraub antes de ser demitido.

“Não tenho alunos negros na graduação ou na pós trabalhando com ciência”, diz o astrofísico Alan Alves Brito. “Tampouco tenho colegas ou parceiros de trabalho.” Ele é o único docente negro dentre mais de cem professores do Instituto de Física da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Brito coleciona experiências como único cientista negro em congressos nacionais e internacionais de sua área de pesquisa. Em um deles, chegou a ser confundido com um funcionário da cozinha. Também já perguntaram se ele era músico. “Nunca acreditam quando digo que sou cientista.”

Cientistas em formação que se declaram especificamente pretos desaparecem ainda mais nas estatísticas nacionais. Em odonto e medicina, menos de 2% dos pós-graduandos são pretos. É a menor taxa nacional.

A falta de diversidade na produção científica é um problema velho conhecido entre estudiosos da ciência. Como a maioria dos pesquisadores no Brasil pertence a uma mesma etnia, questões relacionadas a outros grupos podem ficar de fora dos estudos ou podem ter interpretações enviesadas.

Na prática, corremos o risco, por exemplo, de trabalhar mais na compreensão e no tratamento de doenças comuns em pessoas brancas do que pretas e pardas –que compõem mais da metade da população do país.

Na outra ponta, na área de antropologia, quase 18% dos pesquisadores do país na pós-graduação são especificamente pretos –um recorde nacional. Na sequência, figura serviço social –já com menos de 13,6% de pretos dentre os cientistas em formação nesta área.

A distribuição dos cientistas negros na pós-graduação também é desigual pelo país. Enquanto no Norte 61,2% dos pós-granduandos são negros (o que representa cerca de 4.000 alunos), no Sudeste os negros são apenas 21,2% dos matriculados (11,6 mil alunos ao todo). E vale lembrar que os programas de pós estão concentrados sobretudo no Sudeste do país.

Como os dados de raça passaram a ser coletados somente em 2017 pela Capes, não é possível fazer uma análise sobre a evolução racial na pós-graduação no país. Isso dificulta a análise e definição de políticas públicas na área.

Algumas universidades, no entanto, fazem um levantamento próprio. A geóloga e professora do Instituto de Geociências da USP, Adriana Alves, compilou dados de distribuição por cor da pele nos três últimos níveis da carreira acadêmica na instituição paulista: doutorado, pós-doutorado e docência.

Uma boa notícia: a taxa de estudantes negros (pretos e pardos) subiu no período de 2010 a 2020 na universidade, passando de 75 para 168 (um alta de 124%), mas ainda representa um quinto do total de pós-graduandos.

Entretanto, o número de pesquisadores de pós-doutorado negros representa ainda 11,4% do total.

“O crescimento de alunos e alunas negras se faz às custas do segundo grupo mais hegemônico, que são os amarelos [orientais], e não dos brancos. Os brancos não oscilaram na última década em porcentagem na pós-graduação, enquanto os orientais tiveram uma queda, ao mesmo tempo que os pretos e pardos ascenderam”, explica Alves.

A geóloga se lançou sobre as questões de gênero e raça na pós-graduação e viu como é expressiva a diferença entre as mulheres brancas e as pretas, pardas e indígenas na carreira acadêmica. Por esse motivo, apresentou na última semana na universidade um programa de pós-doutorado voltado especificamente para mulheres negras, que deve contar com financiamento privado.

“Mesmo sem as cotas na pós-graduação o número de pretas quintuplicou. O número de pardas encostou no de brancas. A mudança agora precisa vir de cima.” Para ela, é preciso que os brancos “parem de falar do negro como vítima do racismo e passem a falar do seu privilégio como branco”. “Cientistas em geral não admitem que possuem viés. Nas bancas, o argumento é de mérito, mas como uma pessoa negra vai se sentir incentivada e valorizada se a banca é toda formada por brancos?”

Alves afirma que essa iniciativa irá priorizar áreas em que não há presença de alunas negras e deve diminuir a baixa representatividade, que é tão aparente e cujas iniciativas da universidade, nos últimos anos, foram escassas. “Quero colocar um exército de ‘Adrianinhas’ em todas as áreas da ciência”, finaliza.

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