Feminismo é para todos: ‘Não é só respeitar o diferente, é querer que ele exista enquanto diferente’, diz especialista sobre a luta das mulheres

Em 1975, a Organização das Nações Unidas oficializou o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, em homenagem aos protestos que, desde 1911, tomaram o mundo por mulheres que reivindicavam melhores condições de trabalho e igualdade de direitos. No entanto, por que 110 anos depois, ainda há grupos que lutam por pautas que soam tão parecidas?

G1 conversou com estudiosas sobre o tema para entender quais são os principais debates que levam grupos a defenderem igualdade de direitos entre homens e mulheres na sociedade e qual o ponto de conexão entre todas as lutas. 

“O foco é tentar diminuir desigualdades substanciais em relação às mulheres, pensando em romper barreiras, discriminações e em pensar que ela esteja junto e não contra”, explica Lívia Paiva, professora de direitos humanos do Instituto Federal do Rio de Janeiro.

Lívia Paiva, professora de direitos humanos da IFRJ, comenta que "as mulheres morrem porque são mulheres" — Foto: Marih Oliveira/ TV Globo

Lívia Paiva, professora de direitos humanos da IFRJ, comenta que “as mulheres morrem porque são mulheres” — Foto: Marih Oliveira/ TV Globo

A professora cita obstáculos que, muitas vezes, são invisíveis e precisam ser vencidos no que diz respeito à discriminação de gênero, como o assédio no ambiente de trabalho, a remuneração de mulheres abaixo da de homens e a baixa ocupação de cargos de poder de profissionais do sexo feminino.

“Se a gente olhar todos os dados de segurança pública ou do Dossiê Mulher, vemos que as mulheres morrem porque são mulheres, que são assediadas ou têm uma qualidade de vida mais precária porque são mulheres”, explica Lívia Paiva.

Para ampliar o debate, Juliana Borges, escritora e consultora do Núcleo de Enfrentamento e Memória de Combate à Violência da OAB-SP, acrescenta que seria simples se a prática funcionasse como a teoria: salário igual para trabalho igual.

“Essa é uma grande pauta do movimento de mulheres, se eu trabalho a mesma quantidade de horas que um homem, cumprindo uma mesma função, eu devo receber o mesmo que esse homem. A gente sabe que mulheres brancas recebem cerca de 70% do que homens brancos, enquanto mulheres negras recebem até 25% apenas do que esses homens brancos. Então por que essa diferença se essas pessoas estão cumprindo as mesmas funções?”, argumenta Juliana Borges.

Juliana Borges, escritora, defende que trabalho igual deve ser remunerado igualmente para todas pessoas — Foto: Marcelo Brandt/G1

Juliana Borges, escritora, defende que trabalho igual deve ser remunerado igualmente para todas pessoas — Foto: Marcelo Brandt/G1

Além disso, a escritora explica que não dá para discutir o feminismo hoje sem levar em conta classe, gênero e raça. Ela defende que a sociedade como um todo ganha quando se é pensado em política públicas voltadas para essas intersecções.

“Se nós estamos na base da pirâmide, não significa que os nossos temas sejam específicos, significa que, garantir a mobilidade de mulheres negras significa garantir a mobilidade de toda a sociedade, todo mundo ganha quando mulheres negras, mulheres quilombolas, mulheres indígenas andam, porque essas mulheres compõem a base da sociedade”, conclui.

Mulheres como chefes de famílias — o “trabalho invisível”

Um levantamento da consultoria IDados, baseado em números do IBGE de 2019, aponta que 34 milhões dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. A pesquisa fez o recorte de mulheres com cônjuge.

Segundo Lívia, esses números revelam que parte importante do trabalho da grande maioria das mulheres não é reconhecido, como o cuidar da casa e dos filhos.

“O capitalismo junto com o patriarcado são duas estruturas muito fortes, então a gente pensa que boa parte do trabalho de uma mulher brasileira não é remunerado. Por trás de cada trabalhador de uma fábrica que está empregado existe um trabalho muito invisibilizado de uma mulher”.

Assédio e opressão

A professora lembra que as mulheres são a metade da população do mundo e questiona: “o que nos une?” Ela diz que frequentemente são as falas de assédio ou de quando foram oprimidas.

“Quando uma mulher tenta se separar e ela é agredida, ouve: ‘se você não for minha, você não vai ser de mais ninguém’. Onde é que eles [homens] aprenderam isso? É evidente que existe uma estrutura por trás. De norte a sul do país, a gente ouve relatos muito parecidos de pessoas muito diferentes”.

A Lei Maria da Penha e a luta feminista

“O Brasil é o quinto país mais agressor do mundo e isso mostra uma discrepância em relação à Lei Maria da Penha, considerada a terceira melhor lei do mundo pela ONU. Isso denota que uma lei, por si só, não vai modificar toda uma estrutura cultural”, esclarece a delegada Fernanda Fernandes, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.

Fernanda Fernandes, delegada da Deam de Duque de Caxias, ressalta a importância da Lei Maria da Penha na proteção à violência contra a mulher — Foto: Marcos Serra Lima/ TV Globo

Fernanda Fernandes, delegada da Deam de Duque de Caxias, ressalta a importância da Lei Maria da Penha na proteção à violência contra a mulher — Foto: Marcos Serra Lima/ TV Globo

Para ela, a Lei Maria da Penha é extremamente importante na defesa da mulher porque não transita apenas na esfera punitiva em relação ao agressor, mas também assegura no que diz respeito às questões de prevenção e proteção em relação à vítima.

“Precisamos de políticas públicas preventivas educacionais para que a sociedade entenda que a violência doméstica não é um problema isolado da vítima, é um problema de toda a sociedade”.

Uma das grandes dificuldades é quebrar o ciclo da violência em ambientes em que ele já está instaurado. A delegada conta que, muitas vezes, o agressor não compreende o crime e que, sem uma desconstrução do machismo, ele continuará tendo a mesma conduta e por isso é tão importante o encaminhamento para ‘grupos reflexivos’.

A partir de dados do Instituto de Segurança Pública, a delegada comenta que “a maior parte das mulheres que registra ocorrência, permanece viva”. Fernanda destaca que, em 2019, cerca de 33% dos casos registrados no estado do Rio de Janeiro foram de ameaça e outros 33% de lesão. “Provavelmente os demais casos sejam de subnotificação de mulheres que nem saibam que estejam sofrendo alguma violência, como são os casos das violências psicológica ou patrimonial, que muitas vezes vêm seguido de um feminicídio”, alerta.

No entendimento de Juliana Borges sobre violência doméstica, está diretamente ligada a relações de poder e de posse, em que o agressor acredita ser dono do corpo da vítima.

O feminicídio é o homicídio cometido contra uma mulher pela simples qualidade dela ser mulher. No Brasil, a pena varia de 12 a 30 anos.

Por que o feminismo é necessário?

Fernanda Fernandes, Juliana Borges e Lívia Paiva concordam que o movimento vai além da luta por igualdade. Sobre a luta feminista nos dias de hoje, elas dizem:

“A gente não luta para que a diversidade seja tolerada ou que seja respeitada, a gente luta para que ela seja querida. Não é só respeitar o diferente, é querer que ele exista enquanto diferente. É a expressão da liberdade daquele ser. O feminismo luta para que a diferença exista na sua potência”, define Lívia Paiva.

“Não dá pra gente discutir feminismo sem a gente discutir classe e raça. Então a interseccionalidade é um conceito que articula e que pensa que as questões de raça e classe são dissociadas, precisamos sempre lidar com essas questões de maneira conjunta. Isso vai de encontro com a frase da Angela Davis que ‘quando as mulheres negras avançam, a sociedade inteira avança’. O feminismo está dizendo justamente pra gente romper com essa lógica de que as diferenças na verdade são potencialidades”, resume Juliana Borges.

“O feminismo é necessário para evidenciar que a gente ainda tem muita violência contra a mulher, a gente necessita de políticas públicas de enfrentamento de violência contra a mulher”, conclui Fernanda Fernandes.

Um levantamento feito pelo Monitor da Violência mostra os “efeitos colaterais” da pandemia do coronavírus sobre as mulheres. Os números apontam um aumento nos homicídios de mulheres e feminicídios no primeiro semestre de 2020, quando comparado com o mesmo período de 2019. Em relação aos homicídios de mulheres se destacam as regiões Norte e Nordeste, onde três estados apresentaram crescimento acima de 80%: Rondônia (255%), Tocantins (143%) e Ceará (89%). Em relação ao feminicídio, Acre e Pará se destacaram com um aumento de 167% e 112%, respectivamente.

Serviço:

Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180

Polícia Militar para emergências e a viatura vai até o local – Ligue 190

Polícia Civil para atendimento de violência contra a mulher – Ligue 197

G1