Um alimento que tem sua origem nos povos berberes, do Norte da África, milhares de anos atrás, que primeiro atravessou o Mar Mediterrâneo rumo à Península Ibérica e depois o Atlântico até chegar à América. Foi ressignificado, reinventado, redescoberto. Ganhou variações em diferentes partes do Brasil. Virou fonte de alimento indígena em primeiro lugar, para depois se transformar em símbolo da resistência sertaneja. E que hoje em dia é uma das principais riquezas imateriais da região Nordeste. Esse é o cuscuz, um prato extremamente democrático, que pode ser comido das mais diferentes formas, e que de tão importante tem dia próprio no calendário, visto que a data de 19 de março marca o Dia Mundial do Cuscuz.
O historiador paraibano Diego Gomes explica que o cuscuz surgiu junto com os povos berberes, que habitavam o deserto do Saara, numa extensa faixa territorial que hoje em dia forma estados-nações como Líbia, Tunísia, Argélia, Marrocos e Saara Ocidental.
Saara, o deserto onde vive os berberes e onde o cuscuz nasceu milhares de anos atrás — Foto: Phelipe Caldas/G1
Os berberes, a propósito, não podem ser vistos como um povo unificado. Segundo Diego, eles são, na verdade, diferentes povos que compartilhavam uma mesma matriz linguística e cultural. Eram nômades, comerciantes por natureza, acostumados a dialogar entre diferentes culturas. “Eles transitavam entre a África Subsaariana e o Mediterrâneo. Rompiam as fronteiras do Saara, que por motivos climáticos era uma barreira natural quase intransponível entre essas duas regiões, e criavam conexões entre dois mundos”, explica.
Daí que, quando acontece a invasão moura à Península Ibérica, e a permanência desses no território entre 711 e 1492, os berberes passarão a ser figuras recorrentes nos territórios de Espanha e Portugal. Uma influência que vai permanecer na região da Andaluzia mesmo depois da expulsão dos árabes do continente e que vai contribuir para que o hábito de comer cuscuz seja levado para o outro lado do oceano por tripulantes que participaram das grandes navegações. Não tardou, esse costume seria assimilado pelos povos originários que lá viviam.
Cuscuz berbere, atualmente conhecido também por cuscuz marroquino — Foto: Phelipe Caldas/G1
O cuscuz no Nordeste
Algumas características foram fundamentais para a rápida popularização do cuscuz no Nordeste. O milho era um produto nativo do Brasil, existia em abundância e resistia a qualquer tipo de variação climática. Além do mais, era uma comida de alto valor nutricional. Que qualquer pessoa estava apta a fazer. Os povos indígenas foram apresentados a ele, perceberam as condições favoráveis para o seu consumo, e o adicionaram às suas dietas.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba, que pesquisa comunidades e povos indígenas no Nordeste brasileiro, Estevão Palitot explica que o cuscuz, na verdade, não é um ingrediente específico. Nem uma receita. “O cuscuz é o modo de preparo. É um grão que é hidratado e cozido”, destaca.
Existem, portanto, diversas receitas de cuscuz mundo afora. O berbere, o paulista, o do arquipélago de Cabo Verde, todos eles com especificidades próprias, acompanhamentos específicos. Mas, no Nordeste, que acabaria se tornando a versão mais famosa do Brasil, o cuscuz é preparado da forma mais simples possível: flocos de milho moído cozinhados no vapor de água. O que lhe dá o seu famoso aspecto amarelo vivo.
“O cuscuz no Nordeste vira uma mistura de tradições afroindígenas, em que o português é mero contrabandista”, declara o professor Estevão Palitot.
Para ele, o poder do prato está justamente em sua simplicidade: “O cuscuz é originalmente uma comida de pobre. É a comida vista como sendo de qualidade inferior. É a fonte de energia de quem precisa sobreviver. É aquela comida que só precisa de uma panela, um pano e um prato que já resolve”.
E, justamente por isso, é ressignificado. Vira, com o tempo, ao longo dos anos, das décadas, dos séculos até, a comida de toda hora. Passa a ser sinônimo de lar, de aconchego, de família. “É quando o cuscuz se transforma em identidade, em símbolo de um povo, em discurso”, prossegue Estevão.
Opinião parecida tem a professora Maria Isabel Dantas, cientista social do Rio Grande do Norte que pesquisa o valor simbólico da comida entre diferentes grupos identitários do Nordeste. De acordo com ela, o cuscuz por muito tempo foi consumido por quem não tinha dinheiro para comprar itens como arroz ou carne. Mas é isso que o valoriza como parte da vida de um povo.
Maria Isabel Dantas, professora que pesquisa o valor simbólico da comida — Foto: Maria Isabel Dantas/Arquivo Pessoal
“Ele simboliza a nossa relação com a terra. Carrega uma história que as pessoas atribuem grande significado”, comenta Maria Isabel.
Principalmente porque, em tempos pré-industriais, em que ainda não havia os flocos de milho vendidos em supermercados, e nem mesmo cuscuzeira, todo o trabalho era feito artesanalmente. Colhia-se o milho, batia-o em pilões, peneirava-o. Fervia água numa panela e por cima do vapor colocava-se um pano enrolado com o farelo de milho dentro, até se cozinhar e obter a textura certa do cuscuz. Dava trabalho, muito, principalmente numa época em que as famílias eram grandes. Ao mesmo tempo, era simples. Sem grandes segredos, sem requerer técnicas apuradas.
“É uma comida que está na memória das pessoas. Que passou de geração em geração. O sabor está justamente nessa lembrança”, completa.
Nem sempre se precisou de cuscuzeira para fazer cuscuz — Foto: Maria Isabel Dantas/Arquivo Pessoal
O Nordeste idealizado e o Nordeste do cuscuz
A professora Maria Isabel Dantas comenta ainda que durante muito tempo tentou-se construir no imaginário popular um “Nordeste idealizado” em que o símbolo principal era a carne de sol. Mas a verdade, segundo ela, é que nem todo mundo na região, principalmente no Sertão, tinha dinheiro para esse tipo de iguaria.
“Nem todo sertanejo conhecia o gosto da carne de sol, mas todo ele conhecia o do cuscuz. Era uma comida que estava em todas as mesas”, frisa.
Como acompanhamento, para ser misturado apenas na hora da refeição e sem nenhum tipo de cerimônia, o que estivesse à disposição: carne de terceira, coco, leite, ovos, peixes de água doce, rapadura, miúdos de porco e de boi, etc. Muito por isso, o cuscuz é múltiplo hoje em dia. Tem quem coma ele salgado, tem quem coma ele doce. Seco, ou molhado no leite. Com raspas de rapadura e até mel. Salsicha, queijo, ovo. Dá com tudo.
“É o sofrimento de antigamente que ressignifica o cuscuz. É o que dá a ele uma forte memória afetiva. Se você tira do nordestino esse item de seu cardápio, você tira tudo dele. Porque ali está a sua memória”, prossegue.
Cuscuz com pé de galinha: come-se com o que tem à disposição — Foto: Mario Aguiar/TV Cabo Branco
A diarista Marluce Batista, 60 anos, mulher pobre e sertaneja, confirma tudo isso. “Eu amo cuscuz”, diz de pronto.
Depois, ao ser questionada sobre o que o prato representa para ela, a resposta é incisiva:
“Eu gosto dele de todo o jeito. No café da manhã, no almoço, no jantar. O cuscuz me acompanha desde que eu nasci. Criei meus três filhos com cuscuz. E meu neto adora”, encanta-se Marluce, comprovando que é alimento que ultrapassa gerações.
Natural de Brejo do Cruz, Alto Sertão paraibano, ela confirma todo o processo já descrito. Chegou a realizar pessoalmente o trabalho de batida num pilão de madeira. E arremata:
“Eu fui criada comendo cuscuz com rapadura e toicinho frito desde pequena. É uma delícia. É forte e faz bem”, delicia-se Marluce.
G1