A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) pediu ajuda à área internacional do governo Jair Bolsonaro para destravar a importação dos insumos necessários à produção dos primeiros lotes de imunizantes contra a Covid-19 e registrou, em ofício, que o Escritório de Vacinas do Governo da China exigia uma manifestação do governo brasileiro, o que não vinha ocorrendo.
A reportagem obteve uma cópia do ofício, que tem a data de 11 de dezembro de 2020. Naquele momento, o Escritório de Vacinas chinês já tinha em mãos, havia 11 dias, a documentação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que liberava a importação dos insumos.
O primeiro lote do chamado IFA (ingrediente farmacêutico ativo) só chegou ao Brasil em 6 de fevereiro, mais de dois meses depois de o governo chinês receber a documentação da Anvisa.
As primeiras vacinas ficaram prontas três meses e meio depois do recebimento dos documentos.
A decisão favorável à importação do IFA foi tomada pela Anvisa em 26 de novembro.
Os documentos foram enviados a Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz responsável pela produção de vacinas, e logo remetidos ao governo chinês, que deu um recebido no dia 30, quatro dias depois. Faltava uma posição do governo brasileiro sobre o destino a ser dado ao insumo importado.
Foi por isso que Maurício Zuma, diretor de Bio-Manguinhos, enviou um ofício a Flávio Werneck, assessor especial para assuntos internacionais do então ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello. O assunto era uma “solicitação de auxílio” na importação do IFA, necessário para a produção das vacinas.
“Bio-Manguinhos vem solicitar o apoio deste ministério no processo de importação de 90 ‘criovaults’ da substância ativa, em função de exigência, por parte do governo da República da China, de manifestação de órgão competente do governo federal do Brasil”, afirmou o diretor no ofício.
O governo brasileiro deveria atestar “ciência da importação e destinação a ser dada pelo importador, em função da emergência sanitária em que o país se encontra”.
Segundo os documentos da Anvisa, os 90 “criovaults” continham 16 litros de IFA cada, suficientes para a produção de 15 milhões de doses da vacina desenvolvida pela Fiocruz em parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca.
O primeiro lote do IFA chinês, que desembarcou no Brasil somente em 6 de fevereiro, foi suficiente para apenas 2,8 milhões de doses, segundo a Fiocruz. O processamento desse material, com a disponibilização da vacina, foi concluído em 17 de março.
O restante dos insumos chegou ao país em 27 de fevereiro, numa quantidade suficiente para mais 12,2 milhões de doses, conforme a Fiocruz.
À reportagem o Ministério da Saúde afirmou que encaminhou o ofício da Fiocruz ao Ministério das Relações Exteriores no mesmo dia, 11 de dezembro, “solicitando gestões da Embaixada do Brasil em Pequim junto ao governo chinês e empresas envolvidas”.
No dia 14, o Itamaraty relatou a existência de um diálogo com a China e com a filial da AstraZeneca no país, segundo nota do Ministério da Saúde. Contatos na empresa produtora do IFA foram providenciados, conforme a nota.
Reuniões foram feitas para tratar do tema, envolvendo Ministério da Saúde, embaixada em Pequim e AstraZeneca.
“A dificuldade do processo de exportação do IFA esbarra na alta procura de insumos e de vacinas no mercado mundial. O governo federal manteve contato direto e aberto com o governo chinês, que priorizou o envio dos insumos para parceiros estratégicos, entre eles o Brasil”, afirmou o Ministério da Saúde.
O atraso dos insumos ocorreu num momento em que a pandemia ganhava corpo no Brasil, atingindo níveis de gravidade ainda não vistos.
Em 30 de novembro, dia em que o Escritório de Vacinas do Governo da China recebeu a documentação da Anvisa, o país registrou 317 mortes em 24 horas e chegou a 173,1 mil óbitos. Em 17 de março, data da entrega das primeiras doses fabricadas em Bio-Manguinhos, foram 2.700 mortes, e um total de 285,1 mil óbitos.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), vocalizaram diversas críticas e acusações ao governo da China em diferentes momentos da pandemia.
A postura era compartilhada pelo então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que foi demitido do cargo no dia 29 de março, principalmente em razão da política externa antivacinas.
O novo chanceler, Carlos França, teve conversa recente com seu homólogo na China em que concordaram com a urgência do combate à pandemia e da cooperação bilateral em vacinas, IFAs e medicamentos, segundo nota do Itamaraty.
“O Itamaraty tem facilitado os contatos frequentes entre autoridades dos dois países, inclusive por meio da Embaixada em Pequim, com vistas a agilizar as remessas”, afirmou.
A Embaixada da China em Brasília não respondeu aos questionamentos da reportagem.
No ofício da Fiocruz à assessoria internacional do Ministério da Saúde, o diretor de Bio-Manguinhos explicou que o governo chinês havia solicitado uma posição favorável da Anvisa à importação, o que foi feito. O envio do material ao Escritório de Vacinas chinês foi intermediado pelo setor de relações internacionais da AstraZeneca, conforme o ofício.
“Até o momento não se tem ciência de manifestação por parte do governo da China sobre a suficiência do que foi apresentado”, cita o documento.
“Essa ausência de posicionamento, especialmente em um momento de crucial importância no processo de produção da vacina, traz inafastável preocupação sobre a eventual necessidade de complemento de informações.”
A Fiocruz precisava saber sobre “possíveis exigências complementares”, para que fossem providenciadas as medidas necessárias.
“Por essas razões, solicita-se o apoio deste ministério, mediante assessoramento acerca das ações adequadas no contexto, balizadas pelas normas que regem as relações diplomáticas, buscando-se, prioritariamente, a interação com o órgão técnico da China sobre a suficiência do documento que anteriormente lhe foi disponibilizado”, pediu o diretor de Bio-Manguinhos.
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