Com pouca vacina para muito braço, o lobby para ser incluído no grupo prioritário da imunização contra a Covid-19 agita uma turma que não quer saber de chorar pelo leite derramado.
A Lactantes pela Vacina, campanha promovida por mulheres que amamentam, sustenta que também essa parcela da sociedade merece receber a agulhada contra a Covid-19 primeiro. Nas últimas semanas, mães têm compartilhado fotos nutrindo seus bebês (“mamaço virtual”) para endossar a reivindicação.
O argumento central é uma possível imunização cruzada: numa estratégia “dois em um”, a mãe passaria os anticorpos desenvolvidos após o fármaco para o filho via leite materno. Assim, pelo preço de uma dose, vacina-se duas pessoas -potenciais vetores da doença, ainda que crianças tenham uma taxa de transmissão bem menor.
Essas mulheres também dizem que, assim, levam algum grau de proteção para bebês que não podem se vacinar nem usar máscaras -que oferecem riscos vários para os pequenos, como asfixia e morte por engasgo (eles não têm aptidão motora para remover a barreira facial se tiverem refluxo).
No rol de argumentos estão ainda: incentivo à amamentação prolongada; diminuir a chance de uma lactante que voltou ao trabalho presencial adoecer e contaminar o filho; encorajar mães a levarem seus filhos a pediatras, o que talvez não façam para não se expor ao vírus; reduzir o índice de morte materna.
Uma vitória o movimento já teve: na Bahia, qualquer mulher que amamenta a cria de até um ano tem passe livre nos postos de vacinação desde 13 de maio. Sem lastro no PNI (Programa Nacional de Imunizações), a decisão foi referendada pelo governo do estado.
Vozes contrárias apontam que a campanha esbarra numa premissa básica da fila preferencial de vacinação: enquanto grávidas e puérperas (mulheres até 45 dias de pós-parto) tendem a ter um quadro imunológico mais frágil, lactantes são como uma pessoa qualquer do ponto de vista clínico.
Ou seja, correm menos risco de desenvolver um quadro grave da doença se não tiverem nenhuma condição pré-existente. Morrem menos e ocupam menos leitos de UTI, portanto.
Em 2021, morreram por causa do coronavírus 307 bebês e crianças de até 5 anos, segundo dados do Ministério da Saúde. Já na faixa dos 20 a 39 anos, que costuma concentrar mais lactantes, foram 11.378 vítimas, somando homens e mulheres, as que amamentam ou não (a fatia feminina corresponde, em média, a 45% das mortes).
Agora vamos às vítimas entre 50 e 59 anos: 32.359. O número possivelmente engloba pessoas com comorbidade que até podem já ter se vacinado, mas sem tempo hábil para o imunizante surtir efeito.
A matemática é simples: se a vacinação chegar primeiro a uma mulher saudável e seu bebê, alguém tem que ficar para trás -como um cinquentão mais a perigo do que essa dupla.
Para críticos da campanha, é a história do “quando todo mundo é prioridade, ninguém é”: alguém mais frágil pode ser prejudicado se a demanda das lactantes for atendida.
Esta reportagem, feita por duas repórteres que amamentam, ouviu os dois lados do debate.
“Levando em conta que estamos vivendo há mais de um ano com bebês e crianças em casa, na grande maioria sem rede de apoio, lutar por um direito nosso é exaustivo. Ninguém está confortável na situação de cobrar das autoridades um direito que é garantido em lei”, diz a advogada Mariana Santana, 31, coorganizadora do movimento em São Paulo.
Ela se refere à lei 10.048 de 2000, que dá a lactantes direito ao atendimento prioritário -em bancos e supermercados, por exemplo- ao lado de nichos como gestantes, idosos e obesos.
A ordem para tomar a vacina segue outra lógica, a do risco, o que possibilita que um diabético ou hipertenso se imunize antes.
A meta, segundo Santana, é que as lactantes sejam inseridas no mesmo bloco de gestantes e puérperas. “Ninguém quer furar a fila da vacinação, muito pelo contrário. As evidências científicas já demonstram que vacinar lactantes é também proteger os lactentes.”
Paulo Noronha, obstetra que virou referência de parto humanizado em São Paulo, diz que há estudos comprovando a presença de anticorpos contra a Covid-19 no leite materno de pacientes vacinadas. “Outra coisa: gestantes, puérperas e lactantes têm risco maior de pegar a doença de forma grave”, acrescenta.
É uma ideia é repetida por mães que a Folha escutou. Não há, contudo, respaldo científico para afirmar que uma mulher está clinicamente mais vulnerável apenas por amamentar.
Questionado a respeito, Noronha se corrige e diz que não acha justo ejetar as lactantes da fila preferencial. “Se você vacina todas elas como prioridade, está imunizando outras pessoas e contribuindo para reduzir a circulação do vírus.”
A hipótese é forte, mas ainda não tem chancela científica definitiva. Pesquisa publicada pela revista médica Jama (Journal of the American Medical Association), feita com lactantes israelenses que tomaram a dose da Pfizer, mostrou que há anticorpos no leite materno, o que indica que pode haver proteção.
Mas os pesquisadores afirmam que o estudo possui limitações, uma vez que não foram conduzidos testes para saber se os anticorpos encontrados têm, de fato, efeito neutralizador.
Mariana Santana usa um texto da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) que recomenda imunizar lactantes para dar estofo à campanha.
O documento não defende a priorização das lactantes, apenas afirma que elas podem se vacinar, algo que no início era contraindicado, explica o presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP, Ricardo Kfouri. Não há qualquer orientação da SBP para que recebam sua picada antes de outros grupos.
“Não há nenhuma evidência que sugira que lactantes têm maior chance de desenvolverem formas mais graves do que outras mulheres da mesma faixa etária”, afirma Kfouri. “E bebês são proporcionalmente pouco afetados pela doença. Crianças com menos de seis anos são 0,3% dos óbitos. O problema é que temos um universo de 450 mil mortes.”
“A prioridade da vacina não é só pra quem morre mais”, escreveu Veronica Linder num perfil virtual. Influente ativista de amamentação, ela condensa numa frase uma linha de pensamento cara ao movimento.
Linder cita a defensora pública Charlene Borges, 37. Representante da causa na Bahia, ela lembrou de categoriais incluídas na cabeceira da imunização, como professores (“as escolas precisam funcionar”) e policiais (“princípio de gratidão”).
“As lactantes pleiteiam a construção de um critério sociopolítico, porque entendemos que deve o Estado reconhecer a necessidade de proteção da maternidade de maneira integral”, diz Borges à Folha. Mãe há oito meses, ela se vacinou no sábado (22).
Para a pediatra Mariele Rios, do perfil “Uma Mãe Pediatra”, o risco de morte não deve ser a única coisa levada em conta. “Quando uma mulher lactante é internada, uma criança pequena fica sem o alimento mais importante de sua vida, o que a priva de vários benefícios que impactam no futuro.”
Cristina de Branco, 30, antropóloga e mãe de Valentim, 8 meses, concorda que a variável socioeconômica precisa entrar na equação. “Meu exemplo é muito minoritário e sou consciente disso. Mulher branca, da classe média universitária, com possibilidades de trabalhar dentro de casa. E com um companheiro, né? Sabemos que o número de mães solteiras no Brasil é altíssimo.”
A campanha, portanto, seria sobretudo para o elo mais frágil dessa corrente materna. Num país onde se amamenta em média quatro meses, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda dois anos, são as mulheres ricas que, em geral, possuem condições de amamentar por mais tempo -se a campanha prosperar, elas seriam as maiores beneficiadas.
A diarista Rosana Pereira, 38, conta que parou de aleitar sua filha, hoje com 7 anos, aos dois meses de idade. “Chegava muito tarde do serviço, aí minha nenenzinha tomava leite Ninho mesmo, uma sobrinha dava. Meu peito acabou secando.”
Uma das casas onde ela faz faxina tem um bebê de quase dois anos. A patroa de Rosana é uma advogada que faz home office durante a crise sanitária. “Mesmo antes da pandemia, ela falava que pegaria um táxi pra amamentar a filha no horário de almoço quando voltasse da licença-maternidade.”
Folha