Não foi só o servidor Luís Ricardo Miranda, que depõe nesta sexta-feira à CPI da Covid, quem viu irregularidades no processo de importação da vacina indiana Covaxin para o Brasil. Em suas análises do pedido de autorização em caráter excepcional feito pelo Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária detectou os mesmos desvios que o servidor – e ainda apontou vários outros.
A lista de irregularidades inclui problemas na nota fiscal de importação, previsão de envio de vacinas muito próximas do prazo final de validade e a falta de certificados de eficácia, segurança e qualidade nos padrões da OMS.
Os dados foram usados como justificativa pelo relator dos pedidos da Covaxin, o diretor da Anvisa Alex Campos, para negar a autorização para a importação, na reunião de diretoria de 31 de março deste ano. Todos os outros diretores o acompanharam, vetando a importação por unanimidade.
A vacina indiana só conseguiria o aval da agência mais de dois meses depois, em 4 de junho, após fazer um novo pedido e apresentar novos documentos.
O conteúdo do voto do Campos está disponível no site da Anvisa. Ele mostra que a área técnica da agência, assim como Luís Ricardo, estranhou o fato de as quantidades citadas na nota fiscal (ou invoice, no termo em inglês) apresentada pela importadora Precisa Medicamentos e pelo Ministério da Saúde não baterem com as do contrato assinado.
O contrato previa a compra de 20 milhões de doses em cinco entregas de 4 milhões, mas a nota fiscal falava em 3 milhões de doses de vacina. “O quantitativo de doses (3 milhões) não corresponde ao requisitado no Ofício nº 62/2021/DLOG/SE/MS (20 milhões)”, escreveu o diretor. Além disso, no documento constava que o pagamento seria feito adiantado, ou seja, antes da entrega dos imunizantes.
O papelada foi entregue à agência no dia 22 de março, junto com o pedido de autorização de importação da Covaxin – dois dias após a reunião que o servidor Luis Ricardo Miranda e seu irmão, o deputado Luís Miranda (DEM-DF) tiveram com o presidente Jair Bolsonaro, no Palácio da Alvorada, para relatar irregularidades no processo de compra da Covaxin.
Na conversa com o presidente, Luís Ricardo afirmou ainda que paralisou o processo de importação porque a nota previa pagamento adiantado para uma offshore sediada em Cingapura que não faz parte do contrato com o Ministério da Saúde.
A nota que consta no processo da Anvisa é idêntica à que Luís Ricardo entregou a Bolsonaro. No encontro, o servidor disse ainda ao presidente que estava sendo pressionado a aprovar a importação por coronéis que auxiliavam Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde. Bolsonaro então teria dito que levaria o caso à diretoria-geral da Polícia Federal, mas nada aconteceu.
Depois que a denúncia veio à tona, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, acusou os irmãos de adulterar o documento de importação para levantar falsas suspeitas contra o governo. Lorenzoni afirmou também que pediu que a PF e a Controladoria-Geral da União investiguem os Miranda.
As informações discrepantes sobre a quantidade de imunizantes a serem entregues foram depois corrigidas pela Precisa, que também tirou a previsão de pagamento antecipado. A empresa afirma que a tal offshore era uma subsidiária do grupo que fabrica a Covaxin. Mas ela não está habilitada no contrato para receber pagamentos do governo brasileiro.
Só que esses não eram os únicos problemas detectados por Luís Ricardo Miranda confirmados pela Anvisa. No relatório da agência, constava também que o pedido do Ministério da Saúde previa importar três lotes de vacinas cuja validade expiraria em abril e maio. Como o processo ocorria no fim de março, o relator solicitou que o ministério informasse se era mesmo possível a utilização de todo o imunizante antes da data de expiração.
Como resposta, o ministério mandou informações sobre outro lote, que nem documento de certificação de origem e controle de qualidade tinha. Depois de uma nova consulta, a Precisa informou que todos os lotes estavam no mesmo local e que os certificados foram requisitados e que seriam enviados em breve. A vida curta útil do imunizante foi objeto de mensagens de texto enviadas pelo deputado Luís Miranda para um assessor de Bolsonaro.
Só em 24 de maio o Ministério da Saúde enviou um novo lote de documentos pedidos pela Anvisa, mas ainda assim incompleto. Dessa vez, a agência considerou os parâmetros técnicos para o uso da vacina parcialmente atendidos.
Em 4 de junho, autorizou o governo a importar apenas 4 milhões de doses, para uso restrito na população brasileira. Impôs também 21 condicionantes, que deverão ser objeto de um termo de compromisso firmado pelo Ministério da Saúde caso leve adiante a ideia de importar a vacina da Índia.
Desde então, porém, nenhum assessor do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fez contato com a Anvisa para sanar os problemas que impedem a entrada na Covaxin. Com as denúncias de corrupção feitas pelos irmãos Miranda, fontes no governo acreditam que o processo de compra da vacina indiana cairá no esquecimento.
g1