Os principais sistemas federais da pesquisa brasileira, as plataformas Lattes e Carlos Chagas, vivem um apagão desde sexta-feira (23) após uma falha na área de tecnologia.
O problema impacta processos rotineiros relacionados ao fomento à pesquisa, como pagamento, renovações de bolsas e prestações de contas.
Os dois sistemas são de responsabilidade do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), responsável pelo fomento à pesquisa no país. O órgão é ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
A plataforma Lattes é um banco de dados com todos os currículos de pesquisadores.
Ações como a aprovação de bolsas dependem da consulta ao Lattes. Já pela plataforma Carlos Chagas é que se operacionalizam chamadas públicas e editais de fomento à pesquisa, gestão e pagamento de bolsas.
Cerca de 84 mil pesquisadores são financiados com recursos do CNPq. Além disso, outros órgãos, como a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e agências de fomento ligadas a governos estaduais, também realizam operações com auxílio da plataforma Lattes.
O CNPq publicou nota em que admite o erro, que teria sido identificado no sábado (24). Já faz quatro dias que os sistemas estão fora do ar, mas ainda não há previsão para restabelecimento.
O conselho afirma que prazos estão suspensos e serão prorrogados. Pagamentos de bolsas não serão afetados, segundo o governo.
“O problema que causou a indisponibilidade dos sistemas já foi diagnosticado em parceria com empresas contratadas e os procedimentos para sua reparação foram iniciados”, diz nota do órgão.
Há receio entre pesquisadores e funcionários do conselho de que o problema ocasione perdas de informações. Questionado, o órgão nega que esse risco exista e diz que “existem backups cujos conteúdos estão apoiando o restabelecimento” dos sistemas.
“O CNPq já dispõe de novos equipamentos de TI [Tecnologia da Informação] e a migração dos dados foi iniciada antes do ocorrido”, diz a nota.
Até o email interno do CNPq está fora do ar. Somente o site do órgão continua em operação porque é hospedado no servidor central do governo federal.
Ainda não há detalhes sobre a causa do apagão. Informações colhidas com funcionários indicam que queimou um dispositivo de um equipamento que tem a função de controlar os servidores onde as plataformas ficam hospedadas. Essa falha teria ocorrido durante a migração para um novo equipamento.
Em email obtido pela reportagem, um funcionário do CNPq relata que o problema atingiu o principal servidor do órgão. O equipamento estaria fora da garantia e sem contrato de manutenção -o que impediria um reparo imediato e traria a necessidade de contratação de uma empresa externa.
Funcionários também apontam para a falta de manutenção nessa infraestrutura. Isso seria impacto da pressão orçamentária que o órgão vive no governo Jair Bolsonaro (sem partido) e também na gestão passada, de Michel Temer (MDB).
“A agência está paralisada. Com as plataformas indisponíveis, não conseguimos fazer praticamente nada”, diz Roberto Muniz, diretor do Sindicato Nacional dos Gestores Públicos em Ciência e Tecnologia e presidente da Associação de Servidores do CNPq.
“Pode ter ocorrido falha por acaso, mas não se pode permitir que um equipamento dessa natureza não tenha contratos de manutenção e garantia.”
A necessidade de renovação dos sistemas operacionais do CNPq é assunto recorrente dentro do órgão pelo menos desde 2016, segundo Muniz e integrantes do setor de pesquisa. A maioria dos serviços de tecnologia é fornecido por terceirizados.
À reportagem, o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, disse que a resolução da falha tem sido liderada pelo CNPq para que haja normalidade nos próximos dias. “Não há problemas de orçamento, apenas questão de tempo de manutenção para o retorno”, disse.
A SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) recebeu relatos de impossibilidade de acesso a editais, como o de bolsas de produtividade em pesquisa. De acordo com o presidente da entidade, Renato Janine Ribeiro, é necessário uma posição de defesa das agências de fomento.
“O CNPq tem de ter verbas para as atividades fim, que são as mais importantes, mas também para as atividades meio, que garantem o funcionamento do órgão”, disse. “Há preocupação com a presente situação de crise, mas que no fundo é decorrência de escolhas orçamentárias”.
Para Flávia Calé, presidente da ANPG (Associação Nacional do Pós-graduandos), a perda de dados seria a grande tragédia provocada pela falha. Apesar de o CNPq negar esse risco, a entidade espera o restabelecimento dos sistemas para avaliar o cenário.
“A gente credita esse apagão ao sucateamento do CNPq, que teve redução drástica de orçamento e sofre com defasagem muito grande de pessoal. As questões mais técnicas da plataforma é reclamação antiga e recorrente”, diz ela. “Esse processo que o apagão evidencia faz parte de um entendimento de que não é necessário investir em ciência.”
O orçamento do CNPq para 2021 é o menor ao menos desde 2012, mesmo em valores nominais. A dotação atualizada do órgão para este ano é de R$ 1,2 bilhão — entre 2013 e 2015, o orçamento superava os R$ 2 bilhões.
Os gastos com a administração da unidade, que não incluem pagamento de bolsas, foram nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro os menores desde 2013.
O governo Bolsonaro tentou no início da gestão, em 2019, fundir o CNPq com a Capes, que é ligada ao Ministério da Educação e cuida da pós-graduação. O tema não foi pra frente, mas funcionários dizem que a ideia nunca foi abandonada totalmente.
FolhaPress