Desde que pisou em uma sala de aula como professora, há mais de sete décadas, a paulista Maria Helena de Moura Neves, 91 anos recém-completados, viu que era ali a sua segunda casa. E nunca mais parou. Até hoje exerce a função de ensinar. Também segue atualizada em debates em torno da língua portuguesa, como o uso da linguagem neutra, que entende não ser o termo apropriado, apesar de “louvável”.
“Considero um equívoco o uso desse termo ‘linguagem neutra’ para a proposta que ele representa. Na verdade, esse movimento visa a inclusão social, sem discriminações, de todos os grupos da sociedade, tratando-se, pois, da proposta de uma ‘linguagem inclusiva’, ou ‘língua inclusiva’, o que é extremamente louvável”, diz Maria Helena.
“Quando alguém usa, nas suas produções linguísticas, orais ou escritas, as marcas linguísticas que têm sido propostas com essa finalidade, ele está exercendo um papel social, marcado e importante, de condenação das discriminações”, diz a decana.
“Entretanto, não se pode supor que, em um determinado momento da vida da sociedade, algum falante de uma língua, ou algum contingente de falantes, impelido pela motivação de uma conduta desejável, terá sucesso propondo uma alteração do ‘sistema’ da língua.”
Segundo a professora, toda e qualquer língua se rege por um sistema, dentro do qual seus falantes constroem linguagem naturalmente, sem necessidade de nenhum aprendizado.
“Se recuperarmos historicamente as alterações de sistemas linguísticos, até com extinção de línguas e com criação de novas línguas, veremos que as mudanças, em cada sistema, fizeram-se a partir do uso natural da língua por uma comunidade.”
Maria Helena foi vencedora da primeira edição do prêmio Ester Sabino, criado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo para valorizar pesquisadoras que contribuem para o desenvolvimento científico, na categoria sênior.
A professora atua como docente permanente da pós-graduação em linguística e língua portuguesa na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Também dá aulas na pós-graduação em letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Filha de pais professores, Maria Helena cresceu em volta dos livros. Aos 17, terminou o ensino normal –hoje ensino médio– e teve a possibilidade de poder dar aulas para o então primário.
“O primeiro lugar obtido no curso normal – em escola oficial e com todas as notas acima de 90 – me dava direito à denominada cadeira-prêmio, que era uma nomeação, em caráter efetivo, para lecionar no curso primário, e ainda escolhendo a vaga antes dos aprovados no concurso. Escolhi já em Araraquara (SP), onde moraria depois de casada. Nem se pensava em dispensar um cargo efetivo em grupo escolar, e adorei ser professora de crianças.”
Mas apesar da rápida conclusão do ensino normal, a professora demorou para chegar à faculdade, o que só aconteceu em 1970, já com duas décadas dedicadas à sala de aula.
E foi por meio de políticas públicas oferecidas à época que Maria Helena entrou na faculdade pública (hoje Unesp). Após passar em primeiro lugar no vestibular, ela pode ter um afastamento remunerado como professora primária, concedido pela Secretaria da Educação, para poder frequentar o curso de letras. Assim, iniciou a licenciatura em grego.
“Nos meus estudos de português tinha tido um suporte muito forte em latim, que estudei nos quatro anos do ginásio, e ainda no clássico. Mas o grego era ‘grego’ para mim, e, quando eu falava com meus alunos nos prefixos e sufixos gregos do português, eu me sentia uma impostora, apenas elencando elementos; e meu grande sonho era penetrar naquele universo de conhecimento.”
A partir daí, foi construindo uma carreira sólida, com doutorado e dezenas de livros publicados, entre autorais e em parcerias.
Tendo se beneficiado com políticas públicas na formação de sua carreira, Maria Helena diz que procurou retribuir, com projetos vinculados ao ensino público de primeiro e de segundo grau. Entre 1985 e 1987, propôs e coordenou projetos anuais da Secretaria do Ensino Superior – MEC/SESU para integração da universidade com o ensino de primeiro grau.
Hoje Maria Helena continua na ativa. No momento, conta com dez orientandos, entre mestrado, doutorado e pós-doutorado. Também está finalizando um novo livro, em que discute como se constrói as negativas em linguagem. E mantém a satisfação pelo que faz.
“Tenho uma trajetória de vida profissional que só me deu – e dá – satisfação, e isso porque gosto do que faço, que é lidar com a linguagem. Mas, particularmente, eu acho que já nasci professora, assim como tenho a certeza de que nasci mãe de família. E vejo tanto meus alunos quanto meus orientandos como estudantes a mim confiados, de modo que minha interação com eles é sempre meio maternal”, diz a professora.
Para a professora Denise Silva Araújo, pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Documentação da Universidade Federal de Goiás, políticas públicas são fundamentais na formação do docente. Hoje, segundo ela, existem programas para isso, mas não são colocados em prática da forma como deveriam.
“As políticas públicas para formação de professores existem, são muitas, mas não são suficientes. Nem em termos de quantidade de investimento nem em qualidade. Precisa haver mais investimento na formação inicial, nas universidades públicas para cursos de licenciatura, em programas de formação continuada que articulem o sistema de ensino e as instituições formadoras. Para isso é preciso investimento.”
FolhaPress