Resistência literária no Cariri da Paraíba

Eu encontrava a vida nos livros e levava algumas coisas dos sonhos que o livro me trazia para a vida que me cercava”. O que cercava a vida de Ariano Suassuna (1927-2014), autor dessa frase, era a aridez da paisagem causticante de Taperoá, no Cariri paraibano. É nessa mesma paisagem que convive Valtecio Rufino, responsável pela única biblioteca pública que resiste na cidade da família de um dos maiores escritores brasileiros. Professor de História na rede pública, ele foi alfabetizado apenas aos 17 anos e hoje é o guardião de mais de sete mil livros e um dos grandes incentivadores para que os 15 mil moradores de Taperoá tenham os mesmos sonhos que habitavam no leitor Ariano.

Valtecio Rufino assumiu a gestão da Biblioteca Municipal Raul Machado há menos de um mês. Começou o trabalho recuperando a estrutura física do local danificado pelo tempo e pelo descaso. Ele pintou pessoalmente as estantes do local e tratou de cada um dos exemplares do acervo. Na biblioteca, as maiores estrelas são os livros do autor de O Auto da Compadecida. Os visitantes entram no prédio procurando diretamente as poesias, peças e romances do famoso escritor. Mesmo que o acervo não esteja completo, a joia da co- leção é uma edição exclusiva do Romanced’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. “Temos um exemplar raro, de 1971, que vem de uma família tradicional e é autografado por Balduíno Leles”, conta orgulhoso Rufino. O local abriga também volumes da produção de Pedro Américo, Eça de Queiroz e Machado de Assis, por exemplos.

Atualmente, a biblioteca está sendo am- pliada, reformada e existem projetos de digitalizar e ampliar o acervo, mas o apego de Rufino não é apenas com o espaço físico: é com a promoção da leitura. Antes mesmo de assumir a coordenação da biblioteca, ele já havia criado o projeto ‘Leitura Solidária’, que oferece o empréstimo de livros através de listas divulgadas por WhatsApp. Mais de 100 pessoas já participaram da iniciativa, e muitas delas recebem em casa, das mãos de Valtecio, o livro que têm interesse de ler. Inicialmente, o projeto era direcionado para estudantes em preparação para o Enem e contavam com livros da biblioteca particular do professor. “Foi a partir disso que o município me chamou para assumir a missão de reorganizar a biblioteca”, conta ele.

A paixão pelas histórias contidas nos livros se acendeu ainda muito cedo, quando a irmã de Valtecio lia para ele os folhetos de cordel sob a fraca luz de um candeeiro a gás no sítio Pitombeira, Zona Rural de Taperoá. Mas como diz Nossa Senhora quando roga por João Grilo, “a esperteza é a coragem do pobre”, e para fugir da fome que a seca alastrava, Valtecio decidiu se mudar para o Rio de Janeiro, concluindo lá o ensino médio, aos 27 anos. “Eu visitava todos os sebos do Rio de Janeiro e fui desenvolvendo um carinho pelos livros. Mas o livro sempre fez parte da minha vida”. Na capital carioca, ele fez de tudo. Foi taxista, porteiro, secretário paroquial, vendedor, muitas vezes chegando às 2h da manhã em casa para, às 8h, voltar à sala de aula.

Contando os dias para completar 50 anos de vida, e dividindo seu tempo entre a biblioteca, o magistério e a especialização que faz em Arqueologia e Arqueologia e Patrimônio, Valtecio Rufino se inconforma com realidade brasileira que, entre 2015 e 2020, fechou cerca de 800 bibliotecas públicas. “Essa é uma contradição. Não se melhora a educação sem leitura. Quando a gente reduz o número de bibliotecas ou faz poucos investimentos nelas, estamos tirando a possibilidade do cidadão de melhorar de vida”, afirma. Mas ele vê em Taperoá outro potencial, uma vocação natural.

“Essa é uma biblioteca que está incorporada aos costumes e à cultura taperoense. A gente não consegue imaginar Taperoá sem a biblioteca. A cidade é muito ligada aos seus escritores e talvez tenha ajudado à preservação da biblioteca”.

“Foi o livro que melhorou minha fala e mi-nha capacidade de argumentar. O livro fez toda a diferença na minha vida. Digo assim, mas nem é coisa que pertença ao passado: é a leitura que me impulsiona todos os dias”, ratifica Valtecio, que tem o prazer de ter um livro de sua autoria disponível na biblioteca. Ele publicou o livro de fotografias Sertão dos Excluídos, pela Editora da UEPB, obra que conta com cordéis de Leandro Leite.

Certa vez, Ariano Suassuna afirmou: “Eu não tenho o hábito da leitura. Eu tenho a paixão da leitura. O livro sempre foi pra mim uma fonte de encantamento. Eu leio com prazer, leio com alegria”. É o mesmo sentimento que Valtecio compartilha. Ele chegou a se encontrar com Ariano, tanto na Fazenda Canaúbas como no Recife (PE), quando teve coragem para se apresentar ao imortal como sendo igualmente “filho de Taperoá”, apesar de Ariano ter nascido na capital paraibana. “Eu sou patrimônio de Taperoá. Vocês têm todo o direito de me reivindicar”, teria dito o escritor, segundo Valtecio.

Apaixão pelos livros fez de Valtecio Rufino um exímio contador de histórias populares e “causos” de personagens de Taperoá. Essa faceta foi inclusive explorada recentemente por um quadro no Fantástico, da Rede Globo. “Não me tornou famoso nem rico, mas me deixou muito alegre de ter feito”. Mas para os frequentadores da Biblioteca Raul Machado, não há que segue em sentido oposto ao Brasil oficial ninguém mais famoso que Rufino.

 

Jornal da União