Em meio às cinzas dos escombros, com quase dois metros de altura de entulhos acumulados, resultado do colapso de três andares do Museu Nacional, agora amontoados no térreo, cientistas escavam cuidadosamente, com o auxílio de pequenas picaretas e até pincéis, na esperança de encontrar peças raras das coleções incendiadas. É um trabalho arqueológico no que antes foi uma exposição de arqueologia.
Arqueólogo do museu, Pedro Von Seehausen lembra que o início do trabalho de resgate, logo após o incêndio do dia 2 de setembro de 2018 na Quinta da Boa Vista, foi muito árduo. A área em que ele está atuando reuniu o que sobrou das exposições de paleobotânica, de egiptologia, sua especialidade, e também o acervo museológico que ficava no terceiro andar.
“Tinha vigas que derreteram, uma quantidade de ferragens imensa, e material espalhado no meio delas. No primeiro momento do resgate a gente tinha que entrar no meio e voltava pra casa todo arranhado, mas feliz de estar conseguindo recuperar o material. E muito calor, trabalhando debaixo do sol”.
Trabalho de escavação no Museu Nacional do Rio – Fernando Frazão/Agência Brasil
Com experiência em escavação, por participar do projeto no complexo funerário de Neferhotep, na cidade egípcia de Luxor, para ele o mais difícil foi lidar com a carga emocional de procurar o que sobrou do material que pesquisava.
“Essas tumbas, curiosamente, sofreram uma série de incêndios no século 19. Então eu tinha uma noção de como era o material egípcio queimado. Claro que eu não estava preparado para a carga emocional que foi ter que lidar com o lugar que eu considero a minha casa. Após o incêndio eu fiquei tendo sonhos de que eu estava em casa e minhas coisas estavam queimadas. É uma sensação simbólica que a gente tem”.
Com curso de doutorado em andamento também no Museu Nacional, Von Seehausen explica que tem utilizado as técnicas de sua pesquisa, com tecnologia de digitalização em 3D, no trabalho de resgate, que passou a ser o foco de seu trabalho desde o incêndio.
“No meu doutorado eu trabalhava com as estelas egípcias, que são blocos de rocha com inscrições hieroglíficas, a maioria com função funerária, parecida com as lápides que a gente tem hoje. Utilizando tecnologia de 3D para conseguir ler sinais que estariam apagados pela erosão do tempo. Eu tinha parte do material já digitalizado, então estou usando as tecnologias 3D para conseguir reconhecer esse material e, se for o caso, reconstruir o acervo imprimindo as partes que estão faltando”.
Salas do Museu Nacional da UFRJ, na Quinta da Boa Vista, onde acontece trabalho de resgate de peças, um ano após o incêndio. – Fernando Frazão/Agência Brasil
O arqueólogo destaca que o trabalho de resgate é totalmente científico, feito por especialistas. “A gente teve que trabalhar com peças do Egito antigo, junto com peças da paleobotânica, junto com peças de outras áreas. E o fogo se comportou de formas diferentes na sala. O resgate é feito por cientistas de diversas áreas, paleontólogos, arqueólogos, pensando junto, tentando entender junto como as coisas podem ser feitas e pensando a ciência a partir disso”.
Para Von Seehausen, o olhar especializado na busca qualificada em meio aos escombros é fundamental para conseguir recuperar muitos materiais. “Tem coisas que só um olhar treinado consegue perceber. Um shabit, que é uma estatuetinha de servidor funerário, por ser de cerâmica, ficou na mesma tonalidade da telha. As estelas, falaram que eram reboco. Então se não fosse um olhar treinado jogariam fora”.
O arqueólogo destaca que do trabalho pós incêndio saíram inúmeros artigos científicos. “Os olhares acadêmicos estão focados aqui. Muita gente curiosa para saber o que sobreviveu, como sobreviveu e o que a gente pode fazer com isso. Ciência é o que não vai faltar. É um cenário triste, mas ao mesmo tempo a gente consegue trabalhar e fazer ciência nesse cenário”.
Pedro von Seehausen, doutorando em Arqueologia, especialista em egiptologia do Museu Nacional da UFRJ, resgata fragmentos ósseos um ano após o incêndio. – Fernando Frazão/Agência Brasil
Ele destaca que já foram recuperadas mais de 300 peças, inclusive algumas raras, o que mantém a coleção egípcia do Museu Nacional como a maior do Brasil.
“Tivemos uma perda grande, de material em madeira, das múmias sobreviveu o esqueleto. Mas tivemos boas surpresas, como o escaravelho-coração da Sha-Amun-en-su, uma das múmias que D. Pedro II trouxe para cá. Estava em um caixão e ele nunca foi aberto, foi mantido lacrado esse tempo todo. Em 2005 nós fizemos uma tomografia dela e a gente constatou que ela tinha o amuleto escaravelho-coração e um saquinho com oito amuletinhos. Com o incêndio, o caixão se perdeu, o material ósseo ficou e nós fizemos um trabalho de peneirar e repeneirar até achar todos os amuletinhos”.
Do alto da fachada do palácio, as musas das ciências, estátuas poupadas pelas chamas, seguem inspirando o trabalho dos pesquisadores.
Assista na TV Brasil: relembre a história do Museu Nacional no programa Expedições, exibido em 2012.