Saiba quem é testemunha que confirmou pela primeira vez o esquema das rachadinhas

O Ministério Público do Rio apresentou à Justiça uma denúncia formal contra o senador Flávio Bolsonaro, do Republicanos, filho do presidente Jair Bolsonaro.

A denúncia revela provas de uma investigação que durou mais de dois anos sobre as “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). No esquema, funcionários da Alerj devolviam parte dos salários a um grupo supostamente liderado por Flávio.

Você vai conhecer detalhes inéditos de um depoimento que foi determinante para embasar a acusação. Veja na reportagem de Ben Hur Correia e Arthur Guimarães.

Na reportagem em vídeo, você vai ver:

  • Por que Flávio Bolsonaro pode virar réu no caso;
  • Quem é Luiza Souza Paes, uma das suspeitas que resolveu ajudar o Ministério Público, e a ligação do pai dela com Fabrício Queiroz;
  • A denúncia do MP, com um levantamento de dados para provar que, além de Luiza, outros 11 assessores ligados a Flávio Bolsonaro transferiam boa parte dos salários que recebiam da Assembleia do Rio para Fabrício Queiroz;
  • A organização do esquema — com a divisão entre “núcleo executivo” , “núcleo operacional” e “núcleo político”;
  • A movimentação financeira do esquema: cerca de R$ 6 milhões ao longo de 11 anos;
  • Registros bancários de Flávio Bolsonaro e da mulher, Fernanda, sem nenhum saque em 2014;
  • Registros de um mapa de calor que mostra que vários assessores de Flávio Bolsonaro na Alerj raramente iam à assembleia;
  • A troca de mensagens entre Luiza e o pai, quando as primeiras investigações vieram à tona.

Quem é uma das suspeitas que resolveu ajudar o Ministério Público com provas contra Flávio Bolsonaro e o grupo que atuava, segundo o MP, para desviar dinheiro da Alerj? O nome dela é Luiza Souza Paes.

Quando tinha apenas 20 anos, em 2011, ela foi nomeada assessora parlamentar no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Ela era vizinha de Fabrício Queiroz, apontado como operador financeiro do esquema, no bairro de Oswaldo Cruz, subúrbio carioca.

Além disso, segundo o MP, Fabrício Queiroz jogava futebol com o pai de Luiza num time amador, o “Fala tu que eu tô cansado”. O pai de Luiza chegou a ser homenageado por Flávio Bolsonaro na Alerj. Mas Luiza não ficou muito tempo no gabinete do Flávio Bolsonaro.

Oito meses depois da nomeação, foi transferida para outro setor dentro da assembleia, na “TV Alerj”, que transmite as sessões da casa. Mas o departamento em que ela passou mais tempo foi o de planos e orçamento, ligado à presidência do legislativo fluminense, de onde ela continuou a repassar a maior parte do salário mensalmente para Queiroz, de acordo com a denúncia.

Ainda segundo o MP, Luiza foi uma das integrantes que mais transferiram recursos: R$ 155 mil. Dos salários, que chegaram a R$ 4 mil, ela ficava com, no máximo, R$ 800. Isso aconteceu durante cinco anos de trabalho. Quer dizer, suposto trabalho.

Luiza era funcionária fantasma. E não era a única. O que o Ministério Público apresentou na denúncia foi um levantamento de dados para provar que, além de Luiza, outros 11 assessores ligados a Flávio Bolsonaro transferiam boa parte dos salários que ganhavam na assembleia do Rio para Fabrício Queiroz.

Esses assessores seriam parte do “núcleo executivo” do esquema. A base que estruturava toda a movimentação financeira do que o Ministério Público chamou de organização criminosa por meio desses repasses, feitos muitas vezes com dinheiro vivo.

Os valores chegavam até o que os investigadores chamaram de “núcleo operacional” — onde ficava Fabrício Queiroz, quem mexia com o dinheiro; e Miguel Ângelo Braga Grillo, chefe de gabinete de Flávio desde a Assembleia Legislativa, e que continua com ele no Senado, responsável por gerir os assessores. Só depois, segundo a denúncia, os recursos chegavam até Flávio Bolsonaro — que o MP considera o “núcleo político”.

Para evitar que deixassem rastros, Luiza e os outros membros da organização sacavam o dinheiro e depois faziam depósitos em pequenas quantias, para não precisarem se identificar na hora da transferência.

Segundo a denúncia do Ministério Público, o esquema movimentou R$ 6 milhões ao longo de 11 anos. Ainda segundo o MP, Flávio e a mulher, Fernanda, usaram dinheiro vivo para pagar empregados, passagens de avião, quitar contas e até mesmo comprar apartamentos.

Em 2011, o casal foi para a cidade de Natal (RN). Eles pagaram mais de R$ 2 mil em dinheiro vivo à companhia aérea.

De acordo com a denúncia, eles gastaram quase um R$ 1 milhão a mais do que receberam entre 2010 e 2014. O Ministério Público diz que, para tentar despistar as autoridades, boa parte do dinheiro não entrava nas contas do casal.

O MP diz ainda que Flávio Bolsonaro, apesar de levar uma vida confortável, gastava menos de R$ 200 nos cartões de crédito por mês, em média. Quase tudo era pago com dinheiro em espécie.

Pra comprovar que Luiza e os envolvidos no esquema eram funcionários fantasmas, o MP levantou dados dos celulares deles. Através de um mapa de calor, que rastreia os pontos onde o celular é mais utilizado, identificaram que vários assessores de Flávio Bolsonaro na Alerj raramente iam à assembleia. Alguns passavam anos sem aparecer lá.

A denúncia afirma que no celular da ex-assessora Luiza foram encontradas trocas de mensagens com o pai, quando as primeiras investigações começaram a sair nos jornais.

7 dezembro 2018 – Pai: Caraca! Tu viu alguma parte do Jornal Hoje, hoje de tarde? Bateu direto naquele negócio do Queiroz (…) Direto isso, a foto dele estampada na tela do jornal hoje. Agora deu ruim!

Ao saber que também era alvo das investigações, relata o MP, Luiza perguntou ao pai sobre o que fazer com os recibos dos depósitos feitos a Fabrício Queiroz, e falou sobre encontros com o advogado de Queiroz e também com o então advogado de Flávio Bolsonaro, Luis Gustavo Botto Maia.

Botto Maia também era funcionário da Assembleia do Rio no gabinete de outro deputado e, segundo o Ministério Público, atuou junto com Queiroz orientando diversos envolvidos no esquema da “rachadinha”, para que não comparecessem aos depoimentos e combinassem as versões que seriam contadas às autoridades.

A denúncia revela que, nas mensagens no celular de Luiza, o pai dela demonstra preocupação com a situação da filha:

26 dezembro 2018 – Pai: Contanto que te tire disso e esqueça isso de uma vez e a gente possa viver nossa vida normalmente, ele que invente as histórias dele lá.

Dias depois, Luiza foi chamada por um funcionário da presidência da Alerj para comparecer à Assembleia e preencher a folha de ponto, que ela diz nunca ter assinado:

21 janeiro 2019 – Luiza: Oi, pai. (…) Parece que falta algum ponto que não tá assinado. Só que eu não lembro de ter assinado algum ponto, entendeu?

O pai de Luiza orientou a filha a não ir à Alerj:

21 janeiro 2019 – Pai: Eles querem pegar um “bucha” que é pra ver se desentoca alguma coisa.

Ao analisar os registros telefônicos de Luiza, o Ministério Público detectou que entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2017, período em que ela era funcionária da Assembleia Legislativa, Luiza só foi lá 3 vezes.https://c3565866e75ab35b272472857f4106dc.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html

A próxima visita foi em 24 de janeiro de 2019, quando, segundo a denúncia, compareceu a pedido de Queiroz para preencher as folhas de ponto de 2017, que estavam em branco. Lá, ela teria sido orientada a fraudar os documentos para tentar despistar as investigações sobre funcionários fantasmas no esquema das “rachadinhas”.

Mas, como relata a denúncia, as investigações avançaram e, em abril do ano passado, Luiza e mais 94 pessoas ligadas a Flávio Bolsonaro tiveram o sigilo bancário quebrado com autorização da Justiça.

14 maio 2019 – Luiza: Já viu as notícias? Quebraram o sigilo bancário de um monte de gente. Provavelmente o meu também.

14 maio 2019 – Pai: Já vi e já estragou meu dia isso.

Luiza decidiu, então, colaborar com o Ministério Público e prestar depoimento, contando tudo o que sabia sobre o esquema das “rachadinhas”. O MP apresentou formalmente à Justiça a denúncia do caso.

No documento estão provas levantadas ao longo de dois anos de investigações e que, segundo o Ministério Público, mostram os desvios de dinheiro, a existência de funcionários fantasmas e uma série de outros elementos que apontam Flávio Bolsonaro como suposto chefe de uma organização criminosa dentro da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Além dele, de Fabrício Queiroz e da ex-assessora Luiza, outras 14 pessoas são alvo da denúncia. Entre elas, a mulher e a mãe do ex-PM Adriano da Nóbrega, acusado de comandar um grupo de extermínio e ter ligação com a milícia do Rio, morto numa operação policial na Bahia em fevereiro de 2020.

Na denúncia, Adriano é apontado como membro da suposta organização criminosa, e que teria feito repasses que chegariam a R$ 400 mil para Queiroz.

Se for aceita pela Justiça, todos vão se tornar réus e podem responder pelos crimes de lavagem de dinheiro, organização criminosa e peculato, que é o desvio de dinheiro público. As penas podem chegar até 12 anos de prisão.

Flávio Bolsonaro, que na época dos crimes era deputado estadual, hoje é senador da República. Além das penas pelos crimes, o MP também pede que ao terminar o processo o senador perca o cargo. Pediu também o apartamento em que ele mora no Rio de Janeiro, que teria sido comprado com dinheiro ilícito, e o pagamento de R$ 6,1 milhões pelo dinheiro desviado dos cofres públicos.

O que dizem os citados

Fantástico procurou os citados na reportagem. Em nota, a defesa da ex-assessora Luiza Souza Paes disse que ainda não foi notificada da denúncia e não vai comentar o caso.

A defesa de Fabrício Queiroz disse que as acusações não correspondem à verdade, e que a inocência dele será devidamente demonstrada.

A defesa de Miguel Ângelo Braga Grillo, Fernanda Bolsonaro e do senador Flavio Bolsonaro disse que a denúncia não passa de uma crônica macabra e mal engendrada, e que vai se manifestar na Justiça assim que for notificada.

A Assembleia Legislativa do Rio disse em nota que a responsabilidade sobre a frequência dos funcionários dos gabinetes é dos deputados; que a presidência da casa não tem conhecimento sobre a eventual prática de rachadinhas envolvendo Luiza Paes e Fabrício Queiroz; e que está colaborando com as investigações.

Fantástico não conseguiu contato com as defesas de Luís Gustavo Botto Maia, Danielle Mendonça – esposa de Adriano da Nóbrega na época em que ela trabalhou na Alerj – e de Raimunda Veras Magalhães, mãe de Adriano.

G1