O surgimento de novas mutações no vírus da Covid-19 impõe uma dificuldade adicional em controlar a pandemia. Mas cientistas se surpreenderam com um efeito não antecipado da vacinação, que deve ajudar a frear o ritmo alucinante do surgimento das novas variantes do patógeno. Um novo estudo indica que as vacinas, mesmo quando não conseguem prevenir a infecção, desaceleram a velocidade de evolução do coronavírus.
A conclusão saiu de estudo liderado pela empresa de biotecnologia britânica nference, que analisou o DNA de mais de 1,8 milhão de genomas do Sars-CoV-2. Os cientistas da companhia e de sua subsidiária na Índia mapearam quanto as partículas individuais de vírus variam em cada indivíduo, estudando a diversidade em 53 pessoas infectadas. Os voluntários eram pacientes da Clínica Mayo, de Minnesotta (EUA), que tiveram o genoma de suas amostras de vírus sequenciado.
O estudo, que ainda não passou por revisão independente, foi publicado pelo portal MedRxiv, que divulga trabalhos preliminares. Os cientistas apresentam sua análise dos dados, coletados em 183 países. Desde então, a pesquisa tem sido comentada maciçamente por cientistas no Twitter e em comunidades específicas.
“Observamos que a diversidade do Sars-CoV-2 está diminuindo com o aumento da taxa da vacinação em massa”, escreveram os cientistas, liderados por Michiel Niesen, diretor de pesquisas biomédicas da nference.
Mapeando os genomas do coronavírus disponíveis no banco de dados GISAID, onde cientistas de todo o mundo depositam informações genéticas do vírus, os cientistas mostraram inicialmente o quanto as novas mutações estavam relacionadas à proteína S, que o patógeno usa para invadir as células humanas. Não por coincidência, a proteína S é o “antígeno” alvejado pelas vacinas, ou seja, o componente do vírus que o sistema imune aprende a reconhecer e atacar.
Variantes de alta preocupação, como a Delta, identificada pela primeira vez na Índia e já presente no Brasil, possuem mutações relevantes na proteína S, que é aquela que forma os “espinhos” do vírus na representação clássica de “bola espinhosa”.
Esforço planetário
No estudo, os cientistas mostram que as vacinas estão reduzindo a diversidade genética especificamente no gene do vírus, que guarda as informações para síntese dessa proteína. Comparando a variabilidade de genomas do Sars-CoV-2 de 23 pacientes infectados mesmo após a vacina com as de outros 30 não vacinados, os cientistas viram que, mesmo quando não impedem o contágio, os imunizantes estão freando a velocidade com que esses vírus evoluem.
Isso ocorre porque, quanto mais liberdade o coronavírus tem para sofrer mutações sem comprometer sua capacidade de ataque, maior é a probabilidade de surgirem mudanças genéticas que fortaleçam sua capacidade de se reproduzir e se disseminar.
“Esse estudo apresenta a primeira evidência conhecida de que as vacinas de Covid-19 estão restringindo fundamentalmente as rotas de fuga evolutiva e antigênica acessíveis ao Sars-CoV-2”, escreveram os pesquisadores.
Para completar a análise, eles realizaram um mapeamento da variedades de linfócitos, células do sistema imune que produzem os anticorpos e outros componentes capazes de identificar o vírus.
Entre os linfócitos estão as células B, que têm importante papel na “memória” que o sistema imune constrói para identificar esses agentes infecciosos. Linfócitos e anticorpos atacam diferentes “epítopos” do vírus, ou seja, pedaços de proteína com formatos que o tornam passível de reconhecimento pelo aparato bioquímico do sistema imune.
O estudo é uma análise preliminar. Mas os pesquisadores se dizem otimistas com a perspectiva de o avanço da vacinação frear o surgimento de múltiplas variantes do vírus. Para que isso ocorra, contudo, é preciso que o planeta como um todo obtenha sucesso em ampliar as campanhas de vacinação, já que o que se observou agora é que o vírus aproveita para se diversificar justamente em lugares onde a vacinação demora a avançar e a epidemia sai de controle.
O Globo