A Argentina vai reconhecer o cuidado materno como tempo de serviço computável para a aposentadoria.
Segundo decreto publicado no país vizinho no último sábado (17), as argentinas poderão acrescentar de um a três anos de tempo de serviço por filho que tenha nascido com vida, de modo que elas atinjam o tempo mínimo exigido por lei para alcançar o direito à Previdência.
O benefício se dirige a mulheres que estão em idade de aposentadoria — na Argentina, 60 anos ou mais — e que não possuam os 30 anos mínimos exigidos de contribuição. A projeção é que a regra alcance 155 mil mulheres.
Segundo o texto, serão considerados dois anos por filho adotado e adicionado um ano para cada filho com deficiência. Para aquelas mulheres que tenham sido beneficiadas pelo Abono Universal por Filho para Proteção (programa argentino direcionado para famílias de baixa renda), serão adicionados dois anos por filho.
A notícia repercutiu entre lideranças políticas brasileiras e nas redes sociais.
“Todas nós, mulheres, sabemos exatamente o que é a desigualdade de gênero no trabalho e como ela nos afeta: temos menos oportunidades, ganhamos menos e trabalhamos de graça para a sociedade. Esse trabalho gratuito é o que chamamos economia do cuidado”, disse a vereadora do Rio Tainá de Paula (PT) em sua conta no Twitter.
“Parabéns para a Argentina. O Brasil tem que fazer o mesmo”, escreveu a cantora Daniela Mercury em seu perfil.
Outras figuras políticas, como a deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP) e a candidata à vice-presidência da República em 2018 pelo PCdoB, Manuela d’Ávila, também repercutiram a notícia em suas contas.
A professora de economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Lena Lavinas explica que essa é uma medida de compensação. “Isso é a compreensão de que o Estado falhou em prover um serviço de creche e de pré-escola para que as mulheres pudessem deixar as suas crianças para ir trabalhar”, afirma. Sem essas possibilidades, diz Lavinas, essas mães não puderam contribuir para a Previdência nos anos em que ficaram fora do mercado de trabalho. A legislação brasileira não prevê compensações como as adotadas pelos vizinhos, mas estabelece uma idade mínima para aposentadoria menor para mulheres do que para homens. No entanto, nas discussões durante a reforma da Previdência, aprovada em 2019, foi cogitado eliminar essa diferenciação.
A proposta foi rechaçada parcialmente, com elevação em dois anos do mínimo exigido de mulheres (de 60 para 62 anos). A idade mínima exigida de homens é 65 anos.
Lavinas defende a adoção de uma política nos moldes da Argentina no Brasil. “Seria o reconhecimento de que o trabalho doméstico penaliza as mulheres não só para a sua inserção no mercado de trabalho, mas faz com que elas percam anos de contribuição”, afirma.
Essa mudança, no entanto, não resolveria todas as questões brasileiras, diz a economista. Reorganizar o sistema de aposentadorias considerando a taxa de informalidade — agravada durante a crise do coronavírus — é prioridade, defende. “A pandemia traz um quadro absolutamente dramático para as mulheres.”
Isso porque a crise sanitária afetou áreas como o setor de serviços e o trabalho doméstico (dois grandes empregadores da força de trabalho feminina). Soma-se a isso o fechamento de escolas e outras instituições de cuidado, o que obrigou muitas mulheres a assumirem esses cuidados em casa — de maneira informal e sem remuneração.
Na Argentina, a nova regra foi gestada na Mesa Interministerial de Políticas de Cuidado. Trata-se de um grupo que reúne 15 órgãos do Poder Executivo para pensar e planejar medidas relacionadas a atividades de cuidado, que incluem de tarefas domésticas a ocupações com crianças e idosos. “Todo o governo [argentino] está trabalhando de forma integrada, coordenada para reduzir as desigualdades de gênero”, afirma Lavinas.
“Uma das grandes reivindicações do movimento feminista contemporâneo é trazer a economia dos cuidados para o centro da defesa da vida.”
Para a professora de sociologia da USP (Universidade de São Paulo) Nadya Araújo Guimarães, o grupo de trabalho argentino se debruça sobre atividades que carregam uma “capa de invisibilidade”. “É como se fosse um tipo de trabalho que escapava às formas mercantis, públicas, remuneradas”, afirma.
“Há uma brincadeira de pessoas que atuam nessa área de que o problema se resolve com um punhado de erres: reconhecer, redistribuir e remunerar. Ter um grupo como esse é um movimento simbólico de reconhecimento dessa atividade”, afirma a pesquisadora.
A Argentina não é o primeiro país a fazer uma lei do gênero na região. O Uruguai, por exemplo, reconheceu o trabalho materno em uma lei de 2008, que determina que as mulheres tenham direito a computar um ano de tempo de serviço adicional para cada filho, com um teto de cinco anos.
O Chile, por sua vez, complementa a aposentadoria de mulheres de 65 anos ou mais de idade de acordo com a quantidade de filhos que elas possuam.
FolhaPress