Adriana (nome fictício)* ainda era adolescente quando começou a namorar seu agressor. Apaixonada, ela jamais imaginaria que o futuro seria tão doloroso. Anos depois foram morar juntos. Vinte e seis anos vivendo de agressões, torturas e violência. Foi a Lei Maria da Penha, que neste sábado (7) completa 15 anos, que de certa forma a salvou. No dia em que decidiu dar um basta na situação, foi até a delegacia e relatou tudo que vivia. Quando chegou em casa, mostrou o Boletim de Ocorrência ao marido. No mesmo dia ele saiu da residência. Embora não tenha sido preso, a situação fez com que Adriana ganhasse a liberdade.
Adriana é apenas uma das tantas mulheres que são agredidas todos os dias. Pelo menos sete mulheres são violentadas por dia na Paraíba. De acordo com a Coordenação das Delegacias da Mulher na Paraíba (Coordeam), em todo o ano de 2020, 2.750 inquéritos policiais foram instaurados nas delegacias da mulher do estado. Em 2021, são 746 inquéritos de janeiro a abril.
Além dos inquéritos já instaurados, 3.524 medidas protetivas foram homologadas em delegacias de Polícia Civil no ano passado, além de 598 homologadas em delegacias online, totalizando 4.122. Em 2021, nos quatro primeiros meses do ano, já são 1.384 medidas protetivas homologadas.
‘Ele achava que eu era um objeto dele’
Adriana tenta, mas não consegue explicar porque era vítima de tantas agressões. Já levou socos, tapas, foi espancada e torturada com fio desencapado, levando choques. “Bastava eu conversar com outra pessoa, ele me dava um tapa na cara”, revela Adriana.
No começo parecia inofensivo, mas já reclamava da roupa que Adriana vestia e era bastante ciumento. “Fui deixando, relevando, até que chegamos a ter a convivência a dois. Foi quando tudo piorou”, conta Adriana.
A violência aumentou e ela começou a ser espancada e torturada. “Tive até tortura em choque, ele me queimava, tenho cicatriz de queimaduras também. Eu levava soco, apanhei de fio de cabo de aço”, relembra.Não havia motivos. Nunca há.
“Ele achava que eu era um objeto dele. Eu nunca esqueci uma vez que eu fui buscar água para a mãe dele. Quando entrei, eu já fui recebida com murro porque. Eu caí e já fui rapidamente chutada por ele. E ele dizendo que eu não deveria ter feito isso e que eu teria que aguentar as consequências”, conta Adriana.
Quando as agressões aconteciam, Adriana passava um bom tempo sem ver as pessoas e sem sair de casa, pois ele a mantinha presa. Quando alguém percebia as marcas, ela dava a desculpa de que havia caído ou batido em algum local.
Todos os quatro filhos presenciaram as violências. Inclusive, Adriana chegou a abortar um filho, com apenas dois meses de gravidez, quando apanhou nas costas pelo marido. “Não entendo o que levava ele a fazer isso”, lamenta. As agressões físicas vinham juntas com a violência verbal e psicológica. Na época, Adriana não trabalhava e dependia financeiramente do marido.
Fotografia da exposição “O silêncio que fere” — Foto: Íris Silva/Arquivo Pessoal
Hoje com 45 anos, Adriana diz que jamais esqueceu o que passou, mas também lembra com orgulho de ter dado o primeiro passo para romper o ciclo de violência. “Eu não aguentava mais ver os meus filhos ficando doentes. Minhas filhas não podiam ver ele chegar no portão que já tremiam e choravam. Eu precisava me libertar daquilo. Fui queimada, espancada, humilhada, traída”, conta Adriana.
Na época Adriana estava com câncer e mesmo assim continuava sofrendo com as agressões. No dia que decidiu acabar com essa situação, Adriana conta que estava lavando louça quando, mais uma vez, foi violentada. Ela pegou uma das facas que estavam na pia e tentou matar o marido, dizendo a ele que a partir daquele dia ele nunca mais bateria nela e pediu para que saísse de casa. Depois disso, foi até a delegacia e revelou tudo que estava acontecendo. Com o Boletim de Ocorrência, ela perguntou se ele queria sair por bem ou por mal.
As marcas, no entanto, ficaram. No corpo e na mente. Desenvolveu uma depressão e sempre que olhar as cicatrizes lembra cada agressão que sofreu e cada gota de sangue derramada. “Eu lembro das minhas filhas me alisando, quando eu estava no chão, pedindo para eu levantar, limpar o sangue que estava em mim”, desabafa Adriana. Há nove anos Adriana vive a liberdade de decidir pela própria vida.
Fotografia da exposição “O silêncio que fere” — Foto: Íris Silva/Arquivo Pessoal
Exposição ‘O silêncio que fere’
Adriana é uma das mulheres fotografadas pela professora e fotógrafa Íris Silva para a exposição “O silêncio que fere”, que também ilustra esta reportagem.
A ação se integra às diversas do Comunidade Mais Segura do Projeto de Redução da Violência, executado no Conjunto Mário Andreazza, em Bayeux, pelo Serviço Pastoral dos Migrantes do Nordeste (SPM-NE). A exposição é resultado da parceria do SPM-NE e do Centro de Mulheres Jardim Esperança.
Fotografia da exposição “O silêncio que fere” expõe os tipos de violência contra a mulher — Foto: Íris Silva/Arquivo Pessoal
Ao todo são 23 fotografias em que as próprias mulheres atendidas pelo Centro de Mulheres Jardim da Esperança contribuíram para a recriação de cenas que retratam dor, tristeza, humilhação, medo, mas também esperança e superação.
“O silêncio que fere” aponta para a superação. As mulheres envolvidas no projeto conseguiram falar da violência e ajudaram a reconstruir em cada cena fotografada a representação da violência que um dia já reconheceram. Mas, já não reconhecem porque conseguiram quebrar o chamado ciclo da violência.
“Nosso objetivo é que a partir da exposição, mulheres que vivenciaram a violência possam se inspirar na história dessas mulheres e consigam se reerguer e as que estão em situação de vulnerabilidade e violência doméstica possam quebrar esse ciclo com a ajuda das ferramentas e serviços que atuam no enfrentamento à violência doméstica”, relata Íris.
G1PB