A Medida Provisória (MP) 1.061, já publicada no Diário Oficial da União, põe fim, de uma só vez, ao Programa Bolsa Família e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Para substituir, o governo federal criou o Alimenta Brasil e o Auxílio Brasil, com a promessa de ampliar o repasse de recursos para as famílias em condição de extrema pobreza.
Porém, na prática, no que se refere às famílias rurais do Semiárido, os critérios previstos no Programa Auxílio Brasil, que substitui o Bolsa Familia, estão fora da realidade das famílias agricultoras, que possuem especificidades na produção. Exemplo disso é a exigência de que as famílias produzam os alimentos e entreguem no prazo de 90 dias, uma das regras, prevista no Artigo 14 da MP, para acessar o Auxílio Inclusão Produtiva Rural, uma das modalidades de benefício que integra o Auxílio Brasil.
Acompanhando os debates sobre políticas que envolvem a agricultura familiar na Câmara dos Deputados, o assessor do deputado Federal e coordenador do Núcleo Agrário do PT, Pedro Uczai, Rogério Neuwald, considera o critério “tecnicamente descabido, pois são agricultores e agricultoras que já têm uma certa dificuldade de assistência técnica, área de terra, insumo, toda uma condição precária para produção. E esse agricultor e agricultora, após 90 dias, terá que começar a entregar alimentos a outras famílias na mesma situação”, argumenta.
O agricultor agroecológico do Sítio Paus Doias, no Sertão do Araripe de Pernambuco, Vilmar Lermen, que possui anos de experiência em produção de alimentos e já acessou uma série de políticas de convivência com o Semiárido, acredita que o programa pode “gerar exclusão”, uma vez que se uma família possuir estrutura de acesso à água e for acionada no período de chuvas pode fornecer alimentos, mas se acontecer o contrário, fica inviável. Este seria o caso, segundo ele, de uma família que possui apenas uma cisterna de 16 mil litros e, mesmo assim, tenha que produzir no período de estiagem.
“Olhe, 16 mil litros se você cuidar, dá para para beber, cozinhar e escovar os dentes. As outras águas, ela vai ter que buscar em outro lugar. Se for no período da seca, que dura mais ou menos sete meses, vai ser inviável [produzir alimentos]. Vai ser [um programa] excludente, vai gerar mais fome ainda”, afirma Seu Vilmar. Ele complementa pontuando que para o programa dar certo, seria necessário levar à família outras políticas de assessoria técnica, de reforma agrária, pois a convivência com o Semiárido é viável, desde que as políticas sejam adotadas de acordo com a realidade local.
Descontinuidade e perfil das famílias – Cada família só poderá receber o Auxílio Inclusão Produtiva Rural por um prazo de 36 meses, ou seja, três anos. Após esse período, a família perde o benefício e só pode voltar a recebê-lo três anos depois. Considerando que o público alvo está na condição de pobreza e extrema pobreza, Rogério Neuwald avalia que a regra inviabiliza os resultados. “Um programa que venha efetivamente combater a extrema pobreza e a pobreza, tem que ter continuidade, como é o caso do Bolsa Família, que foi debatido com a sociedade e durou 18 anos. Extrema pobreza e pobreza têm que ser combatidas com políticas públicas permanentes ” pondera.
Para a agricultora agroecológica assentada da Reforma Agrária, moradora do assentamento Né – Laranjeira, localizado no município de Parnamirim, no Semiárido de Pernambuco, Socorro Neto, três anos é o tempo de transição. Ela saiu da condição de pobreza e alcançou uma estrutura produtiva agroecológica diversa, no período entre 2007 e 2019, graças a um conjunto de políticas públicas de segurança hídrica, assessoria tência técnica, educação contextualizada e organização institucional. “Eu acho que três anos é uma adaptação. A partir de três anos é que você começa a produzir por si próprio e ter sua renda. Antes disso, é adaptação. Em três anos, uma família ficar estabilizada? Não tem condições”, avalia.
Segundo o texto da MP 1.061, só terão direito ao benefício Auxílio Inclusão Produtiva Rural famílias em condição de extrema pobreza compostas por gestantes, crianças e adolescentes. As famílias que forem uma exceção a essa composição, estarão excluídas do benefício. “Na realidade, nós temos entre 2,8 milhões e 3 milhões de famílias na pobreza e praticamente quem não tiver filho menor de 21 anos ou não estiver em gestação, não pode entrar no programa”, enfatiza Rogério.
O fim do PAA – O Programa Alimenta Brasil manteve praticamente todas as modalidades do PAA, exceto a que prevê a compra de sementes. Além da perda de renda, esta mudança representa o fim do reconhecimento das sementes crioulas no âmbito das políticas públicas em nível nacional. No âmbito estadual, encontramos um exemplo de reconhecimento legal dessas espécies, na Paraíba, local que possui ampla tradição no resgate e na preservação das sementes da Paixão. Lá, no ano de 2003, as Sementes Crioulas foram reconhecidas pela Lei 10.711 aprovada na Assembleia Estadual da Paraíba. Com isso, passaram a ser incluídas nas políticas públicas locais. Até 1997, as sementes crioulas não eram distribuídas em ações governamentais. Em 1998, uma iniciativa do Governo estadual da Paraíba que classificou as sementes como “grãos”, permitiu a sua distribuição em uma ação do Governo estadual de resposta a uma mobilização da ASA-PB.
O diretor da Cooperativa de Pequenos Produtores Agrícolas dos Bancos Comunitários de Sementes de Delmiro Gouveia (Coppabacs), Mardônio Alves, calcula que a venda das sementes para o PAA representa 80% da renda total das famílias produtoras membro da cooperativa. Considerando quem recebe a doação, o impacto é ainda maior, pois, por exemplo, cerca de 10kg de sementes de feijão distribuídas tem a capacidade de produzir cerca de 600 kg de alimento.
“A extinção [do PAA Sementes] traz danos incalculáveis! Basicamente era o único mercado no qual as sementes eram comercializadas. Você volta a colocar as sementes na marginalidade, desestimula os agricultores, freia o processo de ampliação dos bancos de sementes. Retrocedemos 20 anos de história”, critica Mardônio.
Mudanças integram um projeto político – Agricultor e deputado Federal do PT pelo estado de Sergipe, João Daniel, atua com a pauta da agricultura familiar e enxerga a MP como um passo para consolidar o projeto político do atual governo federal, que tem como prioridade para a agricultura brasileira “a exportação dos produtos da monocultura e o interesse de trazer a população rural para a velha política, sob o controle dos coronéis”. Dessa forma, ele explica que políticas como o PAA, que incentivam as cooperativas e as famílias agricultoras vem sendo enfraquecidas.
A MP 1.061 está em vigor desde a sua publicação no Diário Oficial, ou seja, possui força de lei, mesmo ainda tramitando no congresso. Neste período, é possível apresentar emendas parlamentares, solicitando mudanças ou revogações de normas. Até o momento, o texto recebeu 461 propostas de emendas. A aprovação deve ocorrer em um prazo máximo de quatro meses. De acordo com o deputado João Daniel, a ideia é lutar para tentar mudar algumas regras da medida, mesmo diante do desafio de ter o controle do orçamento na mão do Centrão e a base aliada favorável a Bolsonaro”, observa.
“Eu acho fundamental que a população que elegeu os deputados federais que representam em especial o povo do Semiárido, cobre posição dos parlamentares na defesa das políticas e denunciem que parem de votar contra o povo. É importante que a população olhe para os deputados federais não como alguém que vem trazer dinheiro, mas, sim, qual é o papel deles em defesa do povo brasileiro e das políticas públicas”, conclama.