Atualmente, um homem heterossexual que tenha feito sexo sem camisinha pode doar sangue no Brasil, enquanto um homossexual que tenha um parceiro fixo e use preservativo fica vetado pelos 12 meses seguintes à última relação sexual.
O Ministério da Saúde criou a norma que, na prática, inviabiliza a doação por homossexuais, para reduzir o risco de contaminação por HIV em transfusões. A Procuradoria-Geral da República (PGR), a Ordem dos Advogados do Brasil e ONGs são contra e apoiam uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que questiona sua constitucionalidade.
É este processo que o tribunal retoma nesta quarta-feira, após o ministro Edson Fachin, relator do caso, dar seu voto contra a regra na semana passada. “Orientação sexual não contamina ninguém. O preconceito, sim”, disse Fachin.
Agora, seus colegas dirão se concordam com sua posição ao se questionar: a regra fere a dignidade humana? Viola a cidadania? É razoável e proporcional ao seu objetivo? Afinal, como disse Fachin, é discriminação?
Direito de ser solidário
Ao votar pela inconstitucionalidade na quinta-feira passada, o ministro disse que a restrição “coloca em xeque direitos fundamentais” ao usar como critério “grupos e não condutas de risco”. Fachin destacou que é uma “quase vedação” à doação por homens homossexuais, afeta o exercício de sua autonomia como cidadãos e gera um “impacto desproporcional”.
“Não cabe valer-se de violação de direitos de um grupo minoritário para maximizar outros interesses, mesmo que de uma maioria (…), considerando erroneamente que a sexualidade tida como normal seria inalcansável pelas enfermidades transmissíveis pelo sangue, propagando assim não só o preconceito, mas as próprias doenças cuja transmissão se almeja evitar.”
O ministro considerou que , ao se basearem no gênero de com quem o candidato à doação se relaciona e não em um comportamento específico, a regra incorre em “discriminação injustificada”.
“Viola a forma de ser e existir destas pessoas e o fundamento do respeito à diversidade e à dignidade humana.” O ministro considerou o tratamento “desigual e desrespeitoso”: “Não se pode negar o direito de ser solidário a quem deseja ser como é”.
“A todos serão aplicadas exigências e condicionantes que não são baseadas na forma de uma pessoa existir. A extinção das normas atuais não gera prejuízos à coletividade. É imperioso modificar o critério de restrição”, disse.
A ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, encerrou a sessão por causa do horário avançado, prevendo sua retomada nesta quarta-feira. Cármen Lúcia disse que o voto de Fachin foi “brilhantíssimo”.
Contágio
O processo corre rapidamente. Protocolado em junho de 2016, pedia a suspensão em caráter liminar da proibição prevista na portaria 158/2016 do ministério e na resolução 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – não há restrição para lésbicas. Fachin concordou com a urgência, mas optou por adotar o chamado rito abreviado para que o caso fosse apreciado mais agilmente.
O Ministério da Saúde e a Anvisa, apoiados pela Advocacia-Geral da União e por diretores de hemocentros brasileiros, argumentam que a regra se baseia em estudos científicos sobre o “perfil epidemiológico dos grupos e situações, constatando aumento do risco de infecção em determinadas circunstâncias”.
Não é o que acredita o PSB, autor da ação direta de inconstitucionalidade nº 5543, e outras organizações que também pedem o fim da medida. O PSB diz que como, na prática, a norma impede que homossexuais doem sangue, configura “absurdo tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual”.
O advogado Rafael Carneiro, que assina a petição do partido, defende que a política “ofende a dignidade humana”. “O maior risco de contaminação decorre da atividade sexual, não da orientação homossexual. Um heterossexual também pode ter relação anal sem camisinha e estar sujeito ao mesmo perigo que um homossexual.”
Fazer sexo sem camisinha é a causa da maioria absoluta de casos de HIV no país: é o motivo apontado para 81,7% das 136.945 infecções pelo vírus em pessoas maiores de 13 anos reportadas entre 2007 e junho de 2016 ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Heterossexuais representaram 36,7% dos homens brasileiros contaminados no ano passado – eram 47,3% em 2007. Homossexuais e bissexuais responderam por 59,5% dos novos casos de 2016 – eram 43,8% em 2007. Entre as mulheres, 95,9% dos casos de contaminação ocorreram em relações heterossexuais.
Omissão
Em processos do STF, organizações civis podem se apresentar para defender sua visão. São os chamados amicus curiae. Todos os 13 inscritos na ação são contra a restrição. “Isso representa uma mobilização da sociedade civil bastante relevante”, disse Gustavo Zortéa, da Defensoria Pública da União, à BBC Brasil.
“O limite de 12 meses não tem respaldo legal ou científico e viola o princípio da igualdade. Doar sangue é uma expressão da liberdade e da solidariedade de um cidadão.”
Em parecer de Rodrigo Janot, a PGR diz que a medida não é razoável e dá munição à homofobia e que autoridades de saúde se omitem ao não “adotar mecanismos menos gravosos” para garantir a segurança da doação: “Nem mencionam o uso de preservativo em relações sexuais como critério de seleção de doadores, método com maior eficácia para evitar contágio”.
Autoridades brasileiras citam indicadores de saúde para negar o preconceito. “No Brasil, dados apontam que a epidemia de Aids está concentrada em populações de maior vulnerabilidade, tais como homens que fazem sexo com homens, usuários de drogas e profissionais do sexo, com uma taxa de prevalência do vírus de 10,5%, enquanto, na população em geral, a taxa é de 0,4%”, disse o Ministério da Saúde à BBC Brasil em nota.
O ministério diz que o embargo de 12 meses vale para quem tenha feito sexo casual com um desconhecido, vítimas de estupro e seus parceiros, para quem se prostitui, foi preso, tenha feito uma cirurgia ou uma tatuagem recentemente. “A inaptidão para homens que fizeram sexo com homens utiliza o mesmo critério das demais situações, ou seja, está fundamentada no que há de melhor e mais moderno da literatura médica e científica nacional e internacional.”
A Anvisa ressalta ainda seguir a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), principal autoridade na área, e que manterá o “critério até que estudos provem o contrário”.
Mais chances
Em seu manual de seleção de doadores, a OMS inclui entre os perfis de alto risco homens homossexuais sexualmente ativos. A organização diz que eles têm 19,3 vezes mais chances de terem HIV do que a população em geral e apoia o veto total.
A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) reiterou à BBC Brasil a recomendação de recusa destas doações por 12 meses, ressaltando que “a orientação sexual não deve ser usada como critério para seleção de doadores, por não constituir risco em si mesma”. Ainda segundo a Opas, “a expressão ‘homens que fazem sexo com outros homens’ descreve um fenômeno comportamental e social em vez de um grupo específico de pessoas”.
Os defensores do fim do veto no Brasil dizem que isso não acarretará aumento do perigo, porque candidatos já são escolhidos com base em comportamentos sexuais considerados de risco, seja qual for sua orientação sexual, e que testes aplicados às coletas são capazes de detectar o HIV.
Atualmente, toda doação passa por exames que identificam se o vírus está no sangue 11 dias após a contaminação – período chamado de janela imunológica – e se há anticorpos do HIV 25 dias depois. Em ambos, o intervalo de precisão é muito inferior ao previsto pela regra de exclusão do sangue.
“Mas há casos que fogem da janela imunológica, há tratamentos que afetam a detecção do vírus e a análise do laboratório pode ter erros, por isso adota-se um período maior, ainda que 12 meses pareça ser excessivamente longo e seja muito difícil que o vírus fique indetectável por tanto tempo”, disse à BBC Brasil o médico Luiz Amorim, diretor do Hemorio, um dos principais hemocentros do país.
O hematologista explica que, na sua instituição, heterossexuais só têm doações recusadas caso tenham feito sexo com cinco ou mais parceiros nos últimos 12 meses.
Pressão por mudança
No início do mês, Amorim esteve no Congresso da Associação Americana de Bancos de Sangue, principal conferência do mundo da especialidade, em que a proibição à doação por gays foi debatida. “Há uma grande pressão aqui e em outros países contra essa medida, porque a questão é complexa eparece resvalar no preconceito, ainda que não seja”, disse o médico.
A realidade no exterior não permite extrair consenso. Embora países como Alemanha, Áustria, China e Dinamarca ainda proíbam gays de doar de forma vitalícia, há uma tendência de suavizar esse veto adotado ao redor do mundo após o surgimento da epidemia de Aids nos anos 1980.
Na Noruega, Holanda, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e França, vigora um embargo de 12 meses. Enquanto isso, na Inglaterra e na Escócia, o período de veto passará a ser de 3 meses, mudança justificada com o avanço da tecnologia da detecção do vírus. Itália, México, Espanha, Chile e Argentina foram além, e a orientação sexual do candidato não é levada em conta na triagem, apenas hábitos sexuais.
A proibição era vitalícia no Brasil quando surgiu em 1993. Em 2004, foi alterada para 12 meses após a última relação sexual. “Não há evidências de que, se diminuirmos esse período, não aumentará o risco de contaminação. Também não sabemos qual risco representam gays com parceiro fixo. Os estudos são caros, e um país fica esperando que outro faça.”
Enquanto não houver respostas, diz Amorim, aplica-se o princípio da precaução no Brasil, mantendo a regra atual. Foi essa posição que ele e outros 26 diretores de hemocentros no país manifestaram em uma carta enviada ao STF: “É uma questão técnica e não jurídica”.
Expectativa
A judicialização, no entanto, é um caminho sem volta, e, uma vez provocada, o STF se posicionará. Especialistas em Direito Constitucional ouvidos pela BBC Brasil avaliaram que a medida viola a Constituição.
“Para essas pessoas, se relacionar com alguém do mesmo sexo não é uma simples conduta, é sua identidade. Se você usa esse único aspecto para distinguí-las, você as está discriminando e as impedindo de exercer sua cidadania”, afirmou Thiago Amparo, professor da FGV-SP.
Amparo acredita que o STF anulará a norma, opinião compartilhada por Elival da Silva Ramos, professor da USP e procurador-geral do Estado de São Paulo. Ele defende que a norma seja baseada no comportamento sexual: “A visão atual está superada. Deve ser atualizada com critérios isentos, como fazer sexo sem proteção, em vez de tratar um grupo como mais promíscuo”.
Renan Quinalha, professor da Unifesp, também defende a inconstitucionalidade da regra, mas não acredita que será invalidada.
“Quando temas morais se cruzam com saúde pública, como neste caso, receio que o Supremo não seja tão avançado. Ele não deve criar uma política à revelia do órgão técnico. Não é uma questão tão pacificada com precedentes judiciais quanto a união civil entre pessoas do mesmo sexo, aprovada em 2011”, diz Quinalha.
CARIRI EM AÇÃO
Com BBC Brasil /Foto: Reprodução Google
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