Alex Lopes, 14, conta que os colegas da sua escola salvaram seu cachorro Lucky –ou Laqui, na grafia do menino. “Sou muito grato, se não tivessem me ajudado, meu cachorro estaria morto”, diz.
Os alunos, de uma escola pública de Paulínia (a 117 km de São Paulo), organizaram uma vaquinha para levar Lucky ao veterinário –a família de Alex não tinha condições de pagar pelo tratamento.
A ideia de arrecadar o dinheiro surgiu dentro de um projeto antibullying. Chamado de Equipes de Ajuda, foi implementado desde 2015 em 11 escolas públicas e privadas, em quatro cidades do Estado de São Paulo, além da capital.
Coordenado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem), da Unicamp e Unesp, ele forma alunos para intervir e lidar com bullying em suas escolas.
Inspiradas em um modelo espanhol e finlandês, as Equipes de Ajuda apostam no sistema de apoio entre pares, isto é, entre os próprios alunos.
“Pesquisas mostram que a intervenção dos alunos é 75% mais eficaz do que a de um adulto em casos de bullying. Quando um aluno fala: ‘Para, a pessoa não está gostando’, o agressor tende a ouvir”, explica uma das pesquisadoras do Gepem, a doutora em educação Telma Vinha.
Em cada escola, a Equipe de Ajuda é formada por alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. Os participantes, geralmente três por sala, são eleitos pelos próprios estudantes segundo critérios de confiabilidade.
“Os alunos votam em colegas para quem contariam um segredo. Com isso incentivamos o valor da confiança, do respeito, ao contrário da necessidade de ser popular ou ter poder”, diz a doutora em psicologia e pesquisadora do Gepem Luciene Tognetta, mentora do projeto no Brasil.
No caso de Alex, ele era parte da Equipe de Ajuda, mas sofria bullying. O menino trabalhava como catador de latinha depois da escola, e os colegas o chamavam de “lixeiro”.
“Queria juntar dinheiro para fazer faculdade, quero ser médico. E doava os lacres para um projeto de cadeiras de rodas”, diz Alex, cujo pai é pedreiro e a mãe, dona de casa. Foi no trabalho na rua que o menino encontrou Lucky.
“Tinha pedido pra Deus um cachorrinho”, conta, encabulado, com medo que os amigos façam graça da história.
“Uma vez ele apareceu na porta do bar, e eu pensei: ‘foi Deus que mandou para mim'”, disse. O nome Lucky, assim como o cachorro, “apareceu” sem que o menino soubesse o significado ou a origem.
“Vi logo que ele ia se dar bem comigo, é um bichinho que eu gosto muito.” Por isso, quando Lucky ficou doente, Alex teve mudanças bruscas de humor, o que chamou a atenção dos colegas na escola. O caso foi debatido na equipe, que se mobilizou para arrecadar o dinheiro.
“Em uma semana, os alunos juntaram o valor da consulta, de R$ 90”, diz a orientadora do grupo, Luciana Lapa, do Gepem. Alex conta que o cachorro tomou remédios, foi vacinado e “ficou bom”.
REUNIÃO
Na Escola Comunitária de Campinas, de ensino privado, os alunos também levam casos para debater nas reuniões do projeto. No último encontro, um dos alunos levantou o dedo, tímido, e disse que uma pessoa da escola estava excluída –um dos princípios da Equipe de Ajuda é a confidencialidade, por isso os alunos evitam identificar os colegas, a não ser em casos graves.
“Essa pessoa fica isolada por ter mau hálito. Não tem como dizer para ela o motivo. Acho que precisa chamar os pais para uma reunião, eles podem nem saber do problema”, disse Miguel Santis, 11.
Em todos os projetos, a equipe passa por uma formação e segue sob orientação em reuniões periódicas, conduzidas por um profissional da escola e um do Gepem. Para os encontros, há uma apostila com exercícios práticos.
“Trabalhamos como se posicionar de forma assertiva, ter sensibilidade, observar sinais, usar estratégias de escuta ativa e comunicação construtiva”, explica o pesquisador do Gepem, Raul Alves.
“Eles aprendem sobre empatia, a mostrar compreensão e não julgamento, e a se aproximar de alguém sem ser invasivo”, diz Vinha.
Da mesma forma, professores e coordenadores da escola participam de uma formação de cerca de 100 horas. O projeto é pago pelas escolas, quando são privadas, ou por prefeituras parceiras.
O objetivo é que a Equipe de Ajuda sirva como multiplicadora e contribua para mudar a cultura da escola. Por isso, as atividades focam nas vítimas e também nos agressores e espectadores. “A plateia, que observa, é como o oxigênio do bullying”, diz Alves.
FORMAÇÃO ÉTICA
Segundo uma pesquisa do Gepem com cerca de 200 alunos de uma escola municipal de Campinas, 9 entre 20 tipos de agressões tiveram redução significativa após seis meses de projeto.
“A convivência na escola precisa ser planejada, assim como o projeto político-pedagógico. Se não mudar os valores, o aluno vai ser o adulto que bate na mulher ou o chefe opressor”, diz Vinha.
Além da intervenção, a Equipe de Ajuda também tem um papel na identificação de casos. “O bullying muitas vezes acontece longe do professor. Só descobrimos quando já está muito sério”, explica a orientadora educacional do Bandeirantes, Marina Schwarz –o colégio foi o primeiro a adotar o projeto em SP.
Na escola, houve uma resistência inicial dos alunos. “Muitos ficaram enciumados porque não foram eleitos, mas depois a equipe conseguiu ser valorizada”, diz Schwarz.
“No primeiro ano, o projeto não era muito reconhecido. Os alunos falavam: ‘Já que você é da Equipe de Ajuda, pega a minha caneta que caiu no chão’. Agora o pessoal respeita”, conta Victor Gomes, 13, da equipe no colégio.
A experiência reforça a tese dos pesquisadores do Gepem de que o projeto é parte de um processo lento de transformação da escola e dos alunos, que levam os conhecimentos para a vida.
Esse é o caso de Alex, que, poucos meses após a vaquinha para seu cachorro, se mudou para o interior do Paraná, onde foi morar com a avó.
Deixou para trás amigos, escola e família, mas não o Lucky. A adaptação na nova escola, no entanto, não tem sido fácil. “Não tenho muito amigo. Aqui tem muito xingamento, apelido, essas coisas que eu sei que a Equipe de Ajuda pode combater”, diz.
Por isso, Alex fez uma proposta aos colegas da escola anterior. “Tive uma ideia: queria trazer a Equipe de Ajuda para cá. Mas não sei como fazer, aqui ninguém sabe o que é isso”, disse, em uma mensagem do grupo. “É uma escola inteira, sozinho eu não consigo. Preciso da ajuda de vocês.”
CONTRA RACISMO, AUTOMUTILAÇÃO E SUICÍDIO
As chamadas Equipes de Ajuda do projeto antibullying, além de apoiar as vítimas, podem trabalhar com os agressores e até mesmo agir em casos graves, como racismo, automutilação e suicídio.
Em ao menos duas escolas públicas paulistas, em Campinas e Paulínia, alunos fizeram ações para lidar com esses temas –os nomes das instituições e dos estudantes foram omitidos para preservar a identidade das vítimas e o princípio de confidencialidade do projeto.
Em uma escola na periferia de Campinas, com maioria de alunos negros, a equipe se deparou com bullying por racismo. Após reunião com os coordenadores, decidiram fazer atividades na semana da Consciência Negra e chamar os agressores para conversar.
A equipe identificou cerca de dez meninos que costumavam ter atitudes racistas e os convidou para uma reunião. “Debatemos uma fábula, formamos grupos e respondemos perguntas sobre preconceitos. Acho que eles entenderam que é errado, ficaram meio pensativos no dia”, diz I. O., 14, que é negra e ajudou a organizar a atividade.
“Eles chamavam alunos de animal, macaco. Mas muitos também são negros. Depois da atividade, isso diminuiu bastante. A ideia é ajudar também o agressor, tentamos entender por que ele faz bullying”, diz S. H., de 14 anos.
VÍDEO
Além dessa ação, a equipe passou um vídeo nas salas, escolhido pelos alunos. Em uma das exibições, uma estudante saiu emocionada.
“Fui atrás dela. Ela contou que estava sofrendo racismo. Eu tenho a mesma cor, já sofri muito com isso, então tentei confortá-la. Às vezes só uma palavra de carinho já motiva. Disse para ela que precisamos combater o racismo, mas ela também precisa ter uma opinião boa de si mesma”, afirma S.H.
Fora o racismo, a Equipe de Ajuda também atuou em casos de automutilação e suicídio. Das sete meninas entrevistadas pela Folha nessa escola, três já tinham se cortado. Por terem passado por isso, elas sabem reconhecer os sinais. “Eu usava lâmina de Gilette ou de apontador. Uma vez precisei levar ponto, porque cortei o braço fundo demais. Tive que mentir para a minha mãe”, afirma I.O., mostrando as cicatrizes.
“Eu tinha uma lâmina na capinha do meu celular, que ia comigo para qualquer lugar. Quando ficava muito brava, me cortava no banho. O sangue saía, e eu ficava mais calma. Era um alívio momentâneo”, diz S.H. As meninas contam que ficam atentas ao comportamento de colegas e evitam deixar alunos com esse histórico isolados.
“Se cortar não leva a lugar nenhum, só traz mais problemas. Se a pessoa está muito carregada com ofensas e se machuca, nós vamos estar lá para ajudar”, afirma S.H.
Em casos mais graves, os alunos são aconselhados a revelar a identidade para os coordenadores e buscar ajuda.
“Nós trabalhamos com eles os limites da confidencialidade. Quais as situações que eles podem manter o sigilo e quando eles precisam encaminhar para orientação”, explica Raul Alves, do Gepem.
Em uma escola pública de Paulínia, a Equipe de Ajuda foi de sala em sala para realizar atividades após uma tentativa de suicídio. O aluno sofria bullying e tentou cortar os pulsos com uma faca.
“No tempo em que ficou fora do colégio, nós passamos nas turmas para conversar, sem citar o nome”, explica a aluna J.B., de 14 anos. “Fizemos um aconselhamento sobre suicídio. Falamos sobre o valor das palavras, como o bullying pode machucar e ter um efeito muito forte”, diz.
FAMÍLIA
É comum os alunos afirmarem que a experiência na Equipe de Ajuda teve reflexos em casa e nos relacionamentos com a família. “Apesar de morar junto, a gente não tinha tanto contato, eu era meio afastada. Entendi que a confiança de conversar é algo que só você pode criar. Hoje sou bem mais próxima da minha família”, diz J.B.
Já S.H. conta que aprendeu a reconhecer seus sentimentos e não descontar a raiva nos outros. “Chegava estourada na escola e mandava as pessoas calarem a boca. Parei de fazer isso e criei coragem para enfrentar meus problemas.” A relação com a mãe também mudou. “A gente se abriu mais uma para outra.”
A aluna I.O. percebeu que tem um “gênio muito forte” e elaborou estratégias para “esfriar a cabeça”. “Já empurrei a minha mãe e ficava muito culpada depois. Agora estou bem melhor.”
Como identificar o bullying
Bullying x conflito
No bullying, os ataques são intencionais, repetitivos e têm como objetivo maltratar e humilhar; não há justificativa evidente para as agressões. Ele é realizado entre pares –ou seja, entre alunos, mas com uma desigualdade de poder– e na presença de ‘espectadores’
Vítimas mais comuns
Quem é considerado mais frágil, seja pela renda, orientação sexual, religião, origem, cor ou aparência. Pessoas tímidas ou com baixa autoestima também são alvos, assim como alunos que se destacam por coisas positivas, como beleza e boas notas
Números do bullying
195 mil alunos do 9º ano (7%) afirmaram ter sofrido bullying na escola nos 30 dias anteriores a pesquisa do IBGE em 2015
16% deles citaram a aparência do corpo como principal motivo para a zombaria; outros 11% citaram o rosto
520,9 mil alunos (20%) disseram já ter praticado bullying; dentre os meninos, esse percentual foi de 24%, entre as meninas, de 16%
Como identificar
Possíveis sinais de que a criança sofre bullying
Na escola
– Mostra-se triste frequentemente
– É a última a ser escolhida em atividades e fica isolada ou perto de adultos no recreio
– Tem piora nas notas
– Anda com ombros encurvados, cabeça baixa e não olha no olho
Em casa
– Usa desculpas para faltar à aula
– Tem mudanças extremas de humor
– Gasta mais dinheiro que o habitual na cantina para dar lanche aos outros
– Aparece com hematomas após a aula
Como agir
Dicas para pais
– Observar os filhos
– Acionar a escola e discutir soluções
– Não dizer coisas do tipo “ignore” ou “não ligue”
– Estimulá-los a perceber suas habilidades para resgatar a autoestima
– Se preciso, buscar a ajuda de psicólogos
CARIRI EM AÇÃO
Com Folha de São Paulo/Foto: Reprodução google
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